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A esquerda chilena terá de quebrar uma tradição de mais de três décadas para evitar a chegada da extrema-direita à Presidência. José Antonio Kast venceu o primeiro turno das eleições com 27,9% dos votos válidos, contra 25,8% do jovem progressista Gabriel Boric. Dois pontos porcentuais […]

Contra o relógio. O jovem Boric tem duas semanas para derrotar Kast, que cresceu no vácuo de Piñera
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A esquerda chilena terá de quebrar uma tradição de mais de três décadas para evitar a chegada da extrema-direita à Presidência. José Antonio Kast venceu o primeiro turno das eleições com 27,9% dos votos válidos, contra 25,8% do jovem progressista Gabriel Boric. Dois pontos porcentuais não parecem ser uma diferença tão significativa, mas, desde a redemocratização, sempre que houve um segundo turno, o candidato mais bem colocado manteve a vantagem e elegeu-se. O prognóstico anima o campo conservador a apelar para dogmas religiosos e reforçar a ênfase na segurança pública para manter o apoio conquistado no interior do país.

“Foi um duro golpe, Boric obteve votação menor do que esperávamos. Depois da explosão social de 2019 e da pandemia, vivemos uma grande incerteza”, comenta a cientista social Rosa Moore, moradora de Santiago. “O problema da insegurança está cada vez mais forte e a extrema-direita vale-se disso. Muita gente se mostrava disposta a promover mudanças profundas no país, mas hoje querem algo que assegure a ordem.”

Para superar a diferença de quase 150 mil votos, os caminhos passam pelo fortalecimento da presença nos territórios, especialmente nas militarizadas regiões do sul e do norte, com grande afluência de migrantes e distantes da região metropolitana, onde Boric venceu. Convencer novas fatias do eleitorado a comparecer às urnas, uma vez que o voto é opcional, também pode ser decisivo. No domingo 21, apenas 47% dos 15 milhões de chilenos aptos a votar participaram do pleito. “Será necessário muito trabalho, pois a performance fora da capital foi ruim”, diz Moore. “Por outro lado, muitos jovens podem se mobilizar, alterando o cômputo final.”

Vencedor do primeiro turno, o ultradireitista Kast sempre se opôs  à elaboração de uma nova Carta Magna

Há alguns meses, poucos acreditariam que o Chile estaria no cenário ­atual, com o enfraquecimento de partidos políticos e polarização do eleitorado que em muito lembra as eleições brasileiras de 2018. Kast é um saudosista da ditadura Pinochet, defende a proibição irrestrita do aborto, incentiva a população a se armar e apresenta um programa liberal na seara econômica. Boric, por sua vez, é um candidato de esquerda com uma agenda de inclusão e ampliação de direitos, mas que pouco empolga a população chilena, desconfiada da viabilidade de suas pretensões.

Nos recentes pleitos para escolher governadores e os deputados constituintes, dominaram nomes da centro-esquerda. Não por acaso, um dos slogans da campanha de Kast é a expressão “atreva-se”. “Algumas particularidades ajudam a entender a situação. A base do presidente ­Sebastian Piñera, salvo de impeachment apesar das negociações nebulosas envolvendo o governo e uma mineradora de sua família, abandonou Sichel (quarto colocado com 12,7%) e voltou-se a Kast, alçando-o como o grande candidato da direita. Muitos deputados, senadores e grandes empresários fizeram essa mesma travessia”, observa a estudante Natália Britto. “Além disso, as pesquisas – algumas delas com indícios de manipulação de resultados – apontavam-no no segundo turno. De certa forma, isso favoreceu seu crescimento, transformando-o em favorito.”

Kast ainda pode ser beneficiado pelo chamado “fator Parisi”. Devedor de pensão alimentícia, o economista Franco ­Parisi fez uma insólita campanha a distância, baseado nos EUA, e obteve quase 900 mil votos, chegando em terceiro lugar. Embora não se defina ideologicamente à esquerda ou à direita, seus eleitores têm perfil mais conservador e foram seduzidos com um discurso de redução do Estado e rigidez nos trâmites migratórios. Nessa linha, as propostas do ultradireitista Kast convergem em alguns pontos, como as promessas de exonerar ao menos 30 mil funcionários públicos e expulsar o embaixador da Venezuela. Só que Parisi não parece disposto a apoiar nem um nem outro. Nas redes sociais, ele chegou a republicar um ressentido comentário da arquiteta Priscilia Pizarro contra seus adversários no primeiro turno. “Nos desprezavam, nos trataram por estúpidos. Somos 900 mil votos e o Cifra e o Nazi agora nos querem”, disparou, aludindo pejorativamente aos mais votados.

Em vão? Os protestos de 2019 pediam um Chile diferente. As urnas vão dizer se a maioria quer o futuro ou passado

O Partido da Gente vai realizar uma consulta online para definir seu rumo. “O imponderável é que, para aprovar ou rechaçar uma lei, tanto a direita quanto a esquerda dependerão dos nossos ­deputados. Aviso que as decisões se darão através da democracia digital”, escreveu a empreendedora Macarena Becker, referindo-se aos seis representantes eleitos pela sigla. Boric, por sua vez, busca unificar o bloco progressista, incluindo a senadora Yasna Provoste, cuja votação alcançou 11,6%. Ela é identificada com um eleitorado de centro e articulou os “retiros”, projeto que permitiu aos chilenos sacar parte do dinheiro de seus fundos de aposentadoria, amenizando a crise econômica em meio à pandemia. “Yasna comprometeu-se a pagar a dívida histórica com os professores herdada da ditadura, seria fundamental agregar essa proposição. O ministério da Educação deve assumir seu papel e não seguir privatizando o ensino”, diz o professor Juan Goya, garantindo a migração do voto para a esquerda.

É também o que deve fazer boa parte dos que apostaram em Marco Enríquez-Ominami, integrante do grupo de ­Puebla, fórum responsável por reunir lideranças à esquerda da América Latina. O experiente político, que terminou em sexto lugar, com 7,6% dos votos válidos, ressaltou para os riscos de o projeto extremista, similar ao bolsonarismo no Brasil, assentar-se ao Palácio de La Moneda, sede do Executivo chileno. “É normal a direita estar no segundo turno, o que não estamos acostumados é com tanto extremismo. Isso é uma anormalidade”, declarou no último debate.

Além da cadeira presidencial, está em jogo o destino da própria Constituinte. Kast foi contra a sua realização e repete críticas aos trabalhos do colegiado. O texto final irá a votação popular em meio ao próximo mandato presidencial. “Esse pode ser, inclusive, um governo de transição”, comenta a advogada Patrícia Arias. “Se Kast vencer as eleições, esse processo não serviria de nada. Em paralelo, Boric comprometeu-se a cumprir o que a nova Constituição determinar.”

O jovem progressista Boric comprometeu-se a respeitar a nova Constituição, mas não será fácil reverter a desvantagem no pleito

“Parte dos chilenos busca um novo pacto social, no qual o Estado tenha um papel central na garantia de direitos das mulheres, minorias e de acesso à educação, saúde e previdência”, complementa Gianfranco Caterina, do Instituto de Relações Internacionais da USP. Nesse sentido, alguns dos projetos encampados pela esquerda, a exemplo da criação de um sistema de saúde universal e gratuito, a oposição ao regime neoliberal e extrativista e o aumento das aposentadorias, acompanhado da extinção das Associações de Fundo de Pensão, podem conectar-se com setores das classes médias e vulneráveis da população.

Participante dos protestos que culminaram na formação da Assembleia Constituinte, Fabíola Campillai foi a mulher mais votada do Chile nas eleições legislativas, tornando-se senadora por Santiago com mais de 350 mil votos. A líder social, que perdeu a visão após a explosão em seu rosto de uma bomba de gás lacrimogêneo lançada por carabineros durante as manifestações, defende a liberdade para os presos civis da revolta, muitos dos quais há quase dois anos detidos sem julgamento. “Dedico essa eleição a todas as vítimas que foram violentadas por este Estado”, discursou a parlamentar, que condiciona o apoio a Boric à garantia do indulto aos reclusos em razão do levante social.

A polêmica em torno da refundação das polícias também estará no centro dos debates. Na última semana, Kast visitou a família do policial acusado pela agressão contra Campillai e, em sua plataforma de governo, está previsto o fechamento do Instituto Nacional de Direitos Humanos. •


VITÓRIA DO CHAVISMO. E DA TRANSPARÊNCIA

A oposição volta a disputar eleições na Venezuela
Por Sergio Lirio

Bandeira branca. Maduro estende a mão aos opositores

Os jornalistas estrangeiros ressaltaram a abstenção de 60%, mas esta não é a informação mais relevante das eleições regionais da Venezuela no domingo 21. A volta da oposição ao jogo democrático e a lisura do processo, atestada por observadores internacionais isentos, dão a entender que os dois lados da contenda desarmaram os espíritos e buscam um espaço possível de diálogo em meio à tragédia social e econômica. Os anos de beligerância, boicote e repressão, potencializados pelo embargo liderado pelos Estados Unidos, cobraram um alto preço dos venezuelanos e as alternativas são cada vez mais escassas. Se a aparente trégua vai durar, só o tempo dirá. Ou Washington. A Casa Branca, contra as evidências, insiste na tese de fraude. “O regime de Maduro mais uma vez privou os venezuelanos de seu direito de participar de um processo eleitoral livre e justo”, declarou ­Antony Blinken, secretário de Negócios Estrangeiros, ao saber dos resultados.

Maior vencedor das eleições, o chavismo conquistou 20 dos 23 departamentos, equivalentes a estados, além da capital Caracas, o presidente ­Nicolás Maduro comemorou a “transparência” do processo, agradeceu aos eleitores e prometeu um ambiente republicano. “Reitero o meu apelo aos candidatos eleitos da oposição para avançar na reunificação nacional. Estendo-lhes as minhas mãos para trabalharmos em conjunto, com boa vontade e fé, para construir a prosperidade do povo”, discursou.

A recusa em participar das últimas eleições regionais, a demora em articular as candidaturas neste ano e a divisão interna explicam o amplo fracasso da oposição nas urnas. Ainda assim, Henrique ­Capriles, ex-candidato à Presidência, exaltou o comparecimento de quase 9 milhões de venezuelanos. “Assim que tivermos resultados totais por estados e municípios, faremos o balanço necessário.” Um dos três antichavistas vencedores, Miguel Rosales, eleito governador de Zulia, departamento mais populoso do país, comemorou: “Venceu a democracia e o engajamento triunfou. A esperança venceu”.

CRÉDITOS DA PÁGINA: MARTIN BERNETTI/AFP, MARCOS CORRÊA/PR E ERNESTO BENAVIDES/AFP – MARCELO GARCIA/CANCILLERÍA VENEZUELA E CLAUDIO REYES/AFP

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1185 DE CARTACAPITAL, EM 25 DE NOVEMBRO DE 2021.

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