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Trump Incorporações

O plano de reconstrução de Gaza realizaria o sonho imobiliário do presidente dos EUA na região

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Cúmplices. O comitê transitório seria compartilhado entre Netanyahu e Trump – Imagem: Jim Watson/AFP
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Na segunda-feira 29, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, anunciou, após uma reunião a portas fechadas em ­Washington com o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, o “Plano Amplo para o Fim do Conflito em Gaza”. A proposta, apresentada de modo apologético, contém 20 itens, entre eles o fim imediato dos ataques e a desobstrução da entrada de ajuda humanitária no enclave. Netanyahu disse aceitar a maioria dos termos, embora insista que a criação de um Estado palestino, último ponto do plano, está fora de cogitação. O Hamas declarou-se disposto a analisar com “boa-fé” e recebeu um ultimato de Trump. Se o grupo armado não concordar em “quatro ou cinco dias”, a Casa Branca não vai impedir as tropas israelenses de levar o massacre de civis às últimas consequências.

O plano propõe um controle compartilhado de Gaza entre os EUA e Israel e tem o formato de um projeto imobiliário para encher o bolso da família Trump e aliados. No item 9, determina que Gaza seja administrada por um “comitê temporário de governança tecnocrático e apolítico, responsável pela administração diária de serviços públicos para o povo”, composto de palestinos e estrangeiros, sob a supervisão de um “Conselho de Paz” presidido pelo presidente norte-americano e integrado, entre outros, pelo ex-primeiro-ministro britânico Tony Blair.

Certas mudanças na proposta irritaram interlocutores árabes

A sugestão de Blair como “governador transitório” é mau presságio para os palestinos. Em 2003, como premier, o trabalhista levou o Reino Unido à Coalizão da Autoridade Provisional, governo imposto pelos EUA em Bagdá após a derrubada de Saddam Hussein. Além disso, Blair é o elo de conexão a um outro plano que circulou nas salas da Casa Branca no primeiro semestre deste ano. No fim de agosto, foi revelada a existência do “Fundo Reconstituição, Aceleração Econômica e Transformação de Gaza ­(GREAT, na sigla em inglês). O texto apontava os “benefícios estratégicos” para os EUA da ocupação de Gaza: “ganhos massivos de dólares, acelerar o IMEC (Corredor Índia–Oriente Médio–Europa, rota dos EUA para competir com a China), solidificar a arquitetura regional abraâmica (normalização da relação de países árabes com Israel), fortalecer o punho sobre o Mediterrâneo Oriental e assegurar à indústria dos EUA acesso a 1,3 bilhão de dólares em terras-raras do Golfo”.

Trump iniciou a costura do plano durante a Assembleia-Geral da ONU. Na terça-feira 23, reuniu-se com oito representantes de Estados árabes e islâmicos: Egito, Indonésia, Jordânia, Paquistão, Catar, Arábia Saudita, Turquia e Emirados Árabes. Buscava o apoio estratégico para levar adiante os termos. Recep Tayyip Erdoğan, presidente turco, declarou, após a reunião, estar “satisfeito” com os resultados do encontro, “frutífero”, segundo ele. O sinal verde era crucial para Washington garantir fundos à reconstrução do território destruído e, como definido no item 15, “desenvolver uma Força Internacional de Estabilização temporária a ser imediatamente alocada em ­Gaza”. Ou seja, as nações árabes, especialmente Egito e Jordânia, se envolveriam no policiamento do enclave palestino.

Desespero. A proposta prevê o imediato desbloqueio da entrada de comida, água e remédios no enclave palestino – Imagem: Omar Al-Qattaa/AFP

Logo após o anúncio, os ministros de Relações Exteriores dos oito países lançaram uma carta conjunta na qual declaravam ver com bons olhos “os esforços sinceros para acabar com a guerra em ­Gaza”, ao mesmo tempo que se colocavam à disposição para participar dos esforços de reconstrução. Mustafa Barghouti, político palestino e fundador do grupo de Terceira Via “Iniciativa Nacional Palestina”, criticou a ideia, que considera abertamente tendenciosa a Israel e omissa na questão central, a ocupação territorial. Para ele, há três grandes armadilhas no texto: a definição dos marcos para a retirada israelense de Gaza é vaga, o plano permite a Israel reiniciar operações militares em áreas do território palestino se as considerar “não livres do Hamas” e, por fim, um governo estrangeiro, encabeçado por Blair, seria imposto, marginalizando os grupos políticos palestinos.

Diana Buttu, advogada palestina especialista em temas de lei internacional, comentou na terça-feira 30: “Todos querem ver o fim do genocídio e por isso a Autoridade Palestina e os países árabes se alinharam para apoiar o plano. Mas, por outro lado, é o pacote todo que dá a Israel o controle perpétuo da Faixa de Gaza e um poder de veto”. Buttu referia-se especificamente a pontos do plano sem a garantia de mecanismos que obriguem os israelenses a se retirar de Gaza. De fato, no item 16, a proposta define que o exército israelense “irá se retirar baseado em padrões, marcos e cronogramas ligados à desmilitarização a ser acordada entre a FDI (o exército israelense), a ISF (a força internacional de policiamento) e os EUA, de forma a assegurar que Gaza não seja mais uma amea­ça a Israel, Egito ou a seus cidadãos”.

A compreensão de Netanyahu, poucas horas depois do anúncio na Casa Branca, é que nenhuma retirada seria implementada. Em declaração postada em hebraico, o premier israelense exaltava o fato de que o país havia virado o jogo. “Agora, o mundo inteiro, incluindo os árabes e muçulmanos, está pressionando o Hamas a aceitar os termos que desenhamos em conjunto com o presidente Trump”, escreveu. “As pessoas constantemente diziam que o exército deveria se retirar… De forma nenhuma, isso não vai acontecer.”

Netanyahu continua sem aceitar a criação de um Estado palestino

O jornalista Barak Ravid revelou em seu blog na plataforma Axios, na terça-feira 30, que o plano havia sofrido significativas mudanças entre as reuniões­ de Trump com lideranças árabes na ONU e o anúncio na Casa Branca. As alterações, prosseguiu, teriam “enfurecido oficiais árabes envolvidos nas negociações”. Os retoques teriam sido feitos no domingo 28, durante uma reunião da qual participaram Steve Witkoff, enviado dos EUA para o Oriente Médio, Jared Kushner, genro de Trump, Netanyahu e seu assessor, Ron Dermer. A mudança central exigida pelos israelenses dizia respeito ao cronograma de retirada do exército. O novo texto atrelava a saí­da ao progresso de desarmamento do Hamas, dando a Israel poder de veto. Ravid informou ainda que representantes sauditas, egípcios, jordanianos e turcos ficaram furiosos quando souberam das alterações. O Catar teria sugerido a Trump adiar o anúncio.

A diplomacia de Doha acabou, no entanto, tirando proveito da barganha de bastidores e conseguiu uma aliança militar com Washington. Na segunda 29, os EUA anunciaram a Ordem Executiva “Assegurando a Segurança do Estado do Catar”, que inclui ação militar para proteger a integridade territorial do país no caso de um ataque estrangeiro. O catalisador foi o mais recente ataque israelense à capital catari, três semanas atrás, na tentativa de assassinar lideranças do ­Hamas que então discutiam outra versão de oferta de cessar-fogo feita por Trump.

Coadjuvante. A Autoridade Palestina de Abbas teria papel secundário – Imagem: Timothy A. Clary/AFP

Enquanto o plano não avança, o genocídio segue. Na quarta-feira 1º, o exército fechou a única estrada, Al-Rashid, que conecta o sul ao norte de Gaza. O objetivo é impedir o retorno de moradores ao norte à medida que Israel amplia as operações de destruição da Cidade de Gaza e a expulsão da população. Só neste dia morreram 41 palestinos.

O plano, com o qual Trump almeja obter o Prêmio Nobel da Paz, uma de suas obsessões, pode até interromper o genocídio, mas liquida os grupos palestinos ou qualquer agenda de resistência local. Os integrantes do Hamas teriam de se entregar e se retirar da vida política. Haveria uma anistia e livre trânsito a quem depusesse as armas. O movimento lembra o que os israelenses e norte-americanos fizeram com a Organização para a Libertação da Palestina em 1982, ao expulsar a liderança para a Tunísia depois dos massacres executados pelo exército israe­lense em conjunto com as falanges libanesas nos campos de refugiados. A Autoridade Palestina, por sua vez, elogiou a proposta. Mahmoud Abbas colocou-se à disposição para “trabalhar com os EUA, países da região, e parceiros”, mas a AP só participaria depois de uma reforma, conforme os itens 9 e 19, a partir de critérios aprovados por Trump. O édito propõe, assim, interromper o massacre em troca da rendição ou destruição dos grupos palestinos e da cessão “temporária” do território a um novo corpo de governança internacional, o que seria ótimo… Para os negócios. •

Publicado na edição n° 1382 de CartaCapital, em 08 de outubro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Trump Incorporações’

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