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Trincheiras no paraíso

Em resposta à China, os Estados Unidos reforçam a presença militar no Indo-Pacífico

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Trincheiras no paraíso
Imagem: Elijah Leinaar/Marinha dos EUA
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Centenas de ilhas e atóis de uma das áreas mais remotas e paradisíacas do Pacífico estão sendo transformadas no que o secretário da Guerra dos EUA, Pete Hegseth, chama de “a ponta de lança da América”, em sua estratégia de “dissuasão à China”. Essa transformação se dá por meio da construção de novas pistas de pouso, bases navais, estações de radares e pontos de lançamento de mísseis que transformam a paisagem, impactam o meio ambiente e interferem no modo de vida de habitantes, que temem ser arrastados para um conflito entre potências atômicas do qual nunca quiseram tomar parte.

A região começou a ser colonizada por europeus a partir do século XVII. E por norte-americanos, no século XIX. Com a Segunda Guerra Mundial, locais como Guam, Ilhas Marshall, Ilhas Marianas, Palau e Micronésia, entre outros, tornaram-se cruciais para os Aliados projetarem suas forças contra o Japão. O Enola Gay, aeronave que lançou a bomba atômica contra Hiroshima, em agosto de 1945, partiu da Ilha de Tinian, nas Marianas. Desde então, os norte-americanos militarizaram muitas dessas ilhas e atóis, incorporando algumas delas aos EUA, caso de Guam, ou estabelecendo acordos com governos independentes da região para o livre uso do território nas estratégias de defesa, a exemplo de Palau, que acabou por se tornar uma espécie de protetorado subalterno.

A área é traumatizada pelos 67 testes de bombas atômicas que os EUA realizaram nas Ilhas Marshall entre 1946 e 1958, e cujos efeitos da radiação perduram até hoje. Dois relatórios das Nações Unidas, publicados em 2012 e 2025, descrevem impactos profundos na saúde dos habitantes das ilhas e de danos irreversíveis ao meio ambiente. Agora, décadas depois do fim da Segunda Guerra e da Guerra Fria, esses mesmos temores estão de volta, à medida que os norte-americanos transformam a região numa trincheira contra os chineses. “Temo que a nossa pequena ilha e o nosso povo sejam usados como escudos humanos”, afirmou Ann Singeo, fundadora e líder de uma ONG de Palau chamada Sociedade Ebiil, que contratou um escritório de advocacia para acionar os EUA na ONU, em novembro de 2024. “Os norte-americanos podem fazer com que alguém se sinta insignificante e descartável, mas nós não somos assim.”

É a “ponta de lança da América”, diz Pete Hegseth, secretário de Guerra

O secretário de Defesa dos EUA, cujo cargo foi rebatizado por Trump, no início de setembro, como “secretário da Guerra”, esteve em março nessa região do Indo-Pacífico. Hegseth anunciou 400 milhões de dólares em investimentos em novas bases na Micronésia e nomeou Guam, onde fará uma instalação militar orçada em 2 bilhões de dólares, como prioridade máxima na estratégia para “dissuadir a China comunista”. De volta a Washington, o secretário explicou a uma comissão parlamentar do Congresso que a região é vital para sua “estratégia de combate futuro”.

Uma das tecnologias bélicas de ponta que os EUA começaram a instalar no ­Indo-Pacífico é o chamado Terminal de Defesa Aérea de Altitude Elevada ­(THAAD, na sigla em inglês), criado para interceptar mísseis balísticos a alturas de até 200 quilômetros. Além do THAAD, as ilhas e os atóis também estão sendo equipados com instrumentos de um sistema de combate chamado Aegis, que busca cobrir esquadras navais norte-americanas com uma espécie de domo protetor, capaz de interceptar aeronaves e mísseis inimigos. Para que tudo possa operar de maneira integrada, é preciso instalar centenas de antenas, satélites e outros sítios de captação e processamento de informação de um sistema de Processamento de Dados Geoespacial (GDA, na sigla em inglês).

Os moradores de Guam preferiam um hospital. Quando recebeu Hegseth na capital, Aganha, a governadora, Lou Leon Guerrero, primeira mulher a ocupar o cargo, integrante do Partido Democrata, disse que os 160 mil habitantes, dos quais 40% são nativos, contam com apenas 39 leitos na unidade naval montada pelos militares dos EUA no território, que também atende moradores de ­Palau e das Ilhas Marianas.

Palau, formada por 340 ilhas e atóis, onde vivem 21,8 mil habitantes, dos quais 70% são nativos, depende do ecoturismo, da pesca, da agricultura de subsistência e de apoio internacional para existir. Em tese, o país é independente, mas os EUA evocam um acordo dos anos 1990 para “justificar uma onda rápida e sem precedentes de militarização, como parte de uma estratégia geopolítica mais ampla para estabelecer seu domínio na região da Ásia e do Pacífico”, como consta na denúncia apresentada pelos moradores à ONU.

Batalha naval. Hegseth anunciou investimentos na Micronésia e em Guam – Imagem: Madelyn Keech/Força Aérea dos EUA

Modelos de cenários de guerra consideram que essas ilhas seriam o primeiro ponto de contato num eventual enfrentamento entre os EUA e a China. Como os dois países são potências atômicas, o risco de uma guerra nuclear devastadora é grande. A China também reclama a possessão de ilhas na mesma região. No arquipélago Spratly, os chineses mobilizaram, entre 2013 e 2016, centenas de navios cargueiros para aterrar bancos de areia, construindo ilhotas artificiais, sobre as quais ergueram pistas de pouso.

Como a região é remota e de difícil acesso, a circulação de informações também fica restrita, sobretudo nos sítios de interesse estritamente militar. Os relatos das organizações locais que pedem atenção das Nações Unidas falam claramente, no entanto, sobre o aumento de disparos de mísseis em áreas de testes, o aterramento e a pavimentação de santuários ecológicos e a instalação de potentes sistemas de iluminação que afetam o curso de vida das comunidades e de maneira permanente a fauna e a flora, da qual os moradores dependem há séculos para subsistir.

Teoricamente, nenhum acordo estabelecido bilateralmente pelos EUA com os governos da região permitiria a realização de obras sem o prévio consentimento das comunidades nativas afetadas. Dispositivos de consulta e de consentimento prévios estão previstos tanto nas legislações nacionais quanto em tratados internacionais, mas é irreal esperar que Trump respeite essas salvaguardas agora, considerando que, por 12 anos, os EUA realizaram nesta mesma zona 67 explosões atômicas que foram mais de 7 mil vezes superiores, em quilotons, à explosão da Hiroshima.  •

Publicado na edição n° 1381 de CartaCapital, em 01 de outubro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Trincheiras no paraíso’

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