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Tradicionalismo, o movimento que ajuda a desvendar a ultradireita

Especialista em radicalismo de direita e autor do livro ‘Guerra pela Eternidade’, o americano Benjamin Teitelbaum explica o fenômeno

Movimento conspiracionista norte-americano de extrema direita, QAnon.
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por Clarissa Carvalhães, de Nova York 

Especialista em radicalismo de direita e autor do livro Guerra pela Eternidade: O retorno do Tradicionalismo e a ascensão da direita populista (288 páginas, R$ 66, Editora Unicamp), o etnógrafo Benjamin Teitelbaum conversou com a CartaCapital sobre o tradicionalismo, um movimento radical que ajuda a desvendar comportamentos excêntricos da nova direita mundial.

“A característica definidora do Tradicionalismo é seu desejo abrangente de rejeitar a ‘modernidade’ e, com isso, a ideia de que a sociedade poderia progredir e melhorar significativamente. Isso normalmente significa rejeitar coisas como ciência moderna, universidades modernas e o estado democrático. Também pode significar rejeitar esforços para criar sociedades mais integradas e igualitárias em termos de raça e gênero”, explica Teitelbaum, também professor na Universidade do Colorado.

O pesquisador da extrema direita e etnógrafo americano Benjamin Teitelbaum (Foto: Ed. Unicamp)

Confira a seguir.

CartaCapital: O ataque ao Capitólio, a expansão da QAnon e da supremacia branca, a negação do Covid-19 e agora, a resistência à vacina. Como podemos identificar o ultraconservadorismo nesses movimentos? 

Benjamin Teitelbaum: O Tradicionalismo pode inspirar as pessoas a rejeitar as alegações de cientistas durante, digamos, a pandemia de Covid-19. Abraçando, em vez disso, conhecimentos rejeitados pela sociedade moderna dominante – como o esoterismo e as teorias de conspiração. A desrespeitar as instituições. A se opor aos movimentos políticos que buscam criar um mundo melhor do que o do passado – os movimentos pelo progresso social.

O Tradicionalismo prega também que todas essas características da modernidade estavam destinadas a reinar agora, e que estão destinadas a se desfazer e dar início a uma nova (e melhor) era de tradição e vitalidade espiritual. Sob essa tese, as pessoas atraídas pelo tradicionalismo podem, por exemplo, comemorar o descrédito da ciência e da educação formal, o mau funcionamento do governo e o colapso da agenda progressista.

CC: É possível encontrar o Tradicionalismo no governo Bolsonaro?

BT: Sim. O próprio presidente Bolsonaro exibe casualmente muitas dessas tendências. Mas são as figuras de dentro e ao redor de seu governo que abraçam o Tradicionalismo com mais fervor e com a consciência do que estão fazendo, isto é, Olavo de Carvalho e Ernesto Araújo.

A ascensão do tradicionalismo não é obra de nenhuma organização, mas sim do sucesso simultâneo de conselheiros e ideólogos isolados

CC: Como uma crise que afeta a todos, destruindo a economia e colapsando o sistema de saúde global, pode ser lucrativa para este grupo? 

BT: Pensadores do Tradicionalismo celebraram o fato de que a pandemia desacelerou a globalização. As nações que se saíram melhor, acreditam, são aquelas que podem fortalecer suas fronteiras – ilhas literais ou figurativas. Na era da Covid, o sonho de um mundo sem fronteiras, onde pessoas e bens se movem sem entraves traz a morte. No Brasil, a pandemia deu a figuras como Olavo e Araújo a oportunidade de criticar especialistas científicos, e o que eles veem como a fonte global (senão regional) do secularismo e do globalismo: a China.

CC: Por muito tempo, você escreve, o Tradicionalismo foi considerado um grupo bizarro e “menor”. O Brasil deve temer o avanço dessa teoria?

BT: O tradicionalismo não foi projetado para, nem acho que jamais será, um movimento de massa. É muito excêntrico, muito bizarro, muito radical em sua oposição às coisas que a maioria de nós considera senso comum. Essas figuras parecem ter uma devoção mais fanática e idealista à causa política do que a média de ativistas ou políticos. Para eles, coisas como nacionalismo e xenofobia e o enfraquecimento da política, mídia e instituições educacionais são apenas meios para um aprofundamento, um fim pseudo-religioso. 

Como um líder de seita, Olavo de Carvalho quer que seus apoiadores confiem apenas nele

CC: E por que Olavo de Carvalho é uma figura importante dentro desse movimento?

BT: Talvez por não fazer parte formalmente do governo, Olavo tem conseguido resistir às crises e manter seu status. Como Steve Bannon antes dele, o papel de Olavo no governo Bolsonaro é principalmente criar instabilidade, conflito e caos. Uma postura fanática e intransigente, a instabilidade, o mau funcionamento do governo… Esses são provavelmente os impactos das figuras de inspiração tradicionalista que podemos observar com mais facilidade. 

CC: Se pensarmos o Tradicionalismo como uma pirâmide, onde estão movimentos como o feminismo, o LGBT, os direitos humanos, e a própria democracia?

BT: Todos os movimentos que você mencionou compartilham algumas semelhanças: eles se esforçam para desfazer hierarquias sociais. Às vezes, esses movimentos são vistos como uma tentativa de eliminar não apenas a hierarquia, mas a diferença social entre iguais. Os tradicionalistas acreditam que essa é busca da era das trevas, uma época em que fronteiras de todos os tipos se desintegram e nos unimos em uma massa homogênea em torno dos valores humanos anti-espirituais mais baixos possíveis.

CC: O que vamos viver não será mais uma disputa entre esquerda e direita, mas um conflito entre tradicionalistas e pluralistas? 

BT: O que se tende a ouvir de observadores políticos é que a política vai se dividir em globalismo X nacionalismo – aqueles que querem aumentar a circulação de bens, dinheiro e pessoas em todo o mundo, contra aqueles que querem diminuí-la. Outros dizem que a cisão será materialismo X imaterialismo, políticos cuja principal preocupação é a economia (sejam liberais ou socialistas) contra aqueles que se preocupam mais com valores políticos culturais ou espirituais, quaisquer que sejam eles.

Os tradicionalistas poderiam encontrar um papel em qualquer uma das variantes. E especialmente em um meio-termo – na política que busca fortalecer as fronteiras e a identidade nacionais para estimular um renascimento espiritual (como a visão de Ernesto Araújo para o Brasil). Se o passado recente for prenúncio, essas figuras não serão a face mais pública desses movimentos, nem tentariam rotular publicamente uma causa como “tradicionalista”. Em vez disso, operariam sob líderes, gurus, levando a causa adiante com fervor e indiferença pela destruição forjada no processo.

CC: Na semana passada, o Twitter e o Facebook baniram permanentemente a conta de Donald Trump. Essas decisões afetam o Tradicionalismo?  

BT: As plataformas de mídia alternativa tiveram um papel estratégico importante para os movimentos de extrema-direita, é claro. É difícil subestimar até que ponto a saída de Donald Trump do Twitter, por exemplo, vai atrapalhar as operações desses grupos.

Para os tradicionalistas envolvidos com a direita, o significado das mídias sociais é maior que sua aplicação estratégica: ela oferece um meio de contornar a mídia profissional convencional, que eles consideram perversa e enganosa. Consequentemente, a perder essa capacidade pode ser mais que um mero obstáculo prático. Pode ser um desafio metafísico mais profundo à sua causa.

O escritor Olavo de Carvalho. Foto: Reprodução/YouTube

CC: Olavo de Carvalho, como habitualmente faz, tentou deslegitimar seu trabalho e livro. Como você recebeu esse comentário feito, a propósito, no Twitter? 

BT: Inicialmente, achei importante ler e refletir sobre as respostas de Olavo de Carvalho. Mas mesmo sabendo que ele normalmente ataca as pessoas que narram sua vida e trabalho, fiquei desapontado. Suas palavras eram tão vazias quanto cheias de veneno. E alguns comentários me fizeram suspeitar que ele não tenha lido o livro. Ele desperdiçou muitas palavras refutando argumentos que eu não uso.

Certos detalhes em suas respostas, como o número de vezes que ele conheceu Steve Bannon e o número de anos que ele passou em uma tariqa islâmica sufi tradicionalista (tariqa é uma ordem do Sufismo que busca a “verdade suprema”), mudaram com o tempo. E ele repetiu diligentemente muitas afirmações falsas – como nunca li nenhuma de suas obras. As pessoas que o seguem de perto sabem porque ele faz isso.

Ele se esforça para minar qualquer tentativa de se filiar a qualquer outra coisa que não seja ele mesmo, bem como a tentativa de qualquer pessoa de ser seu intérprete e interlocutor. Como um líder de seita, ele quer que seus apoiadores confiem apenas nele para informar e interpretar. 

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