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Traço de loucura

Macron mantém o confronto e reconduz Sébastien Lecornu, o breve, ao posto de primeiro-ministro

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O presidente bate o pé. O indicado volta ao tablado – Imagem: Ludovic Marin/AFP
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O presidente da França, Emannuel Macron, continua a ignorar um dito popular. “Insanidade”, afirma o ditado, “é continuar a fazer sempre a mesma coisa e esperar resultados diferentes.” Encurralado no beco sem saída em que ele mesmo se meteu, com 80% de desaprovação, Macron decidiu pagar para ver e reconduziu ao cargo de primeiro-ministro Sébastien Lecornu, derrubado pela Assembleia Nacional em 6 de outubro, após breves 14 dias no cargo. Um novo fracasso de ­Lecornu, tanto na montagem de um gabinete quanto na aprovação do orçamento, rejeitado pela maioria, provavelmente será a última pá de cal na governabilidade do Champs-Élysées.

Em tese, Macron governa um país que, ao lado da Alemanha, é um dos motores políticos, militares e econômicos da União Europeia. Na prática, a economia francesa está, no entanto, em frangalhos. É a terceira mais endividada do continente, atrás apenas da Itália e da Grécia. Em junho, a dívida chegou a alcançar 115,6% do PIB, em um cenário no qual o envelhecimento populacional e o rechaço à imigração formam o par perfeito para uma Previdência deficitária.

Lecornu, o último indicado para desatar o nó político-administrativo, mal esquentou a cadeira de primeiro-ministro. Sua queda foi o reflexo de um impasse mais profundo, criado em 2024 na Assembleia Nacional, onde nenhum partido ou grupo político tem, desde então, maioria absoluta. O sistema francês mescla elementos de presidencialismo e parlamentarismo. O presidente é eleito pelo voto direto, mas depende do Congresso para emplacar o premier, cuja função é nomear os 34 ministros e coordenar os trabalhos executivos, como um chefe de governo. Se o presidente de turno tem maioria, não há problema. No caso de Macron, essa posição foi perdida em 2024.

Foi o próprio presidente quem, em um erro grosseiro de cálculo, antecipou as eleições daquele ano, certo de que obteria uma maioria tão contundente que lhe daria a chance de atravessar o segundo mandato em paz. Faltou combinar com os eleitores. Tanto a Reunião Nacional, de Marine Le Pen, de extrema-direita, quanto a França Insubmissa, de ­Jean-Luc Mélenchon, do setor mais radical da esquerda, tiveram melhor desempenho do que o partido de Macron, que se tornou a terceira força parlamentar. Com isso, as duas pontas do espectro político-ideológico francês passaram a reivindicar o direito de indicar o primeiro-ministro. Macron prometeu negociar com ambos, mas enrolou o desfecho da crise durante meses, sob a alegação de que o país estava concentrado em realizar uma boa Olímpiada. Quando os jogos acabaram e a política voltou ao ritmo normal, o presidente ignorou a reivindicação dos opositores e indicou, sem maiores consultas e na sequência, três aliados. Michel Barnier durou três meses no cargo. François Bayrou ficou um pouco mais, nove meses, mas não resistiu ao rechaço à proposta de um orçamento austero e cedeu lugar a Lecornu.

A oposição protocolou novas moções de censura

Na batalha interminável, Lecornu passou à história como o recordista em brevidade. Mesmo assim, o presidente francês não deu o braço a torcer e reconduziu o pupilo ao cargo apenas quatro dias depois da queda, com a incumbência de apresentar um gabinete capaz de agradar a um número maior de parlamentares. Assim, Lecornu II, como tem sido chamado, voltou à carga, prometendo uma mudança completa na equipe. A estratégia é apresentar nomes “técnicos” ou ligados à sociedade civil. O manejo de fato alcançou pastas importantes, entre elas Interior, Trabalho e Educação, nas quais os indicados não são políticos, mas profissionais reconhecidos em seus respectivos ramos. Para o Ministério da Transição Ecológica, foi indicada Monique Barbut, atual­ presidente da ONG ambiental WWF.

O retrofit de Lecornu II não passa, no entanto, de maquiagem. Dos 34 indicados, 12 foram reconduzidos aos mesmos cargos que ocupavam anteriormente, enquanto outros seis tinham sido ministros de Macron em gabinetes passados. “Não tenho nenhuma ambição que não seja a de, simplesmente, sair dessa situação, que é muito penosa para todo mundo”, afirmou o premier, apelando para que a Assembleia Nacional aceite seu gabinete e não o derrube outra vez. “É preciso que o governo possa ser livre. Quer dizer, sensível às questões partidárias, mas sem se tornar prisioneiro dessas questões.”

O apelo a uma espécie de união nacional, mesmo sem mencionar o termo, não encontrou eco em uma Assembleia Nacional em pé de guerra, com a extrema-direita e a esquerda empenhadas em ataques sistemáticos ao governo, com vistas às eleições presidenciais do próximo ano. Menos de 24 horas depois da recondução de Lecornu, os dois setores políticos mais expressivos da oposição protocolaram novas moções de censura, que podem derrubá-lo de novo. “Além de uma crise securitária, migratória, econômica e orçamentária, nosso país está, desde o início do mês de setembro, numa crise política sem precedentes”, disse, em comunicado, o partido de Le Pen, prevendo que “só o retorno – do direito de decisão – ao povo permitirá a tomada das decisões políticas que levarão à saída dessas múltiplas crises”.

À esquerda, Jean-Luc Mélenchon disse que Macron “é a causa da crise política atual” e, por isso, deve ter o mandato abreviado, por decisão de dois terços da Assembleia Nacional. A respeito do risco de o cenário favorecer uma extrema-direita que não para de crescer e que poderia chegar à Presidência, o líder da França Insubmissa afirmou ser “preciso vencer o Reunião Nacional politicamente” e, para tanto, “é preciso uma ruptura total com o macronismo”.

A declaração de Mélenchon visa o eleitorado que votou em duas ocasiões em ­Macron como um mal menor, uma forma de evitar a chegada da extrema-direita ao poder. Le Pen está inelegível, pois foi condenada por desvio de fundos eleitorais, mas novas lideranças do partido, a começar pelo jovem Jordan Bardella, despontam.

Enquanto as eleições não chegam, a disputa é transferida para um Parlamento engessado, no qual ninguém tem força suficiente para suplantar o adversário, e onde o imobilismo ameaça cada vez mais inviabilizar de vez o atual governo. •

Publicado na edição n° 1384 de CartaCapital, em 22 de outubro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Traço de loucura’

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