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Terrorismo de Estado
Israel lança ataques em massa ao Líbano e amplia a tensão no Oriente Médio


O cheiro de borracha queimada pairava pesadamente sobre os socorristas enquanto eles cavavam com cuidado, removendo os escombros, suas sombras longas e os movimentos duros sob os holofotes. A população observava o progresso em silêncio, esperando qualquer sinal de vida sob o prédio destruído por quatro mísseis israelenses em Dahieh, subúrbio ao sul de Beirute, poucas horas antes, na tarde de sexta-feira 20. Um vidro quebrado manchado de sangue foi varrido para o lado e a área estava isolada, integrantes do Hezbollah e da defesa civil libanesa gritavam ordens para garantir a chegada dos veículos de emergência ao local. Homens com mãos recém-enfaixadas, produto de pagers com armadilhas explosivas alguns dias antes, andavam por ali enquanto mulheres soluçavam. “O melhor amigo do meu filho, sua mãe, seu pai e seus três irmãos estão todos sob os escombros. O filho mais velho tem 19 anos, o mais novo, 2”, descreveu Hassan, um morador de Dahieh de 40 anos, observando os esforços de resgate.
Todos esperavam por alguém, em uma torcida para que fossem encontrados, mas temendo que surgissem mortos. Moradores correram na direção dos socorristas quando se espalhou a notícia de que pessoas foram encontradas. Estavam vivas, e a ambulância acelerou em direção ao hospital, acompanhada por uma escolta de jovens em motos, buzinando e comemorando enquanto seguiam.
Durante quase um ano, a guerra com Israel permanecera no sul. Enquanto aviões de guerra israelenses bombardeavam aldeias na fronteira e mais de 100 mil moradores fugiram para o norte, políticos em Beirute pediram uma redução da tensão para evitar uma guerra, apesar do fato de ela ter começado. Uma semana sangrenta e implacável de ataques tornou, no entanto, impossível ignorar a guerra. Milhares de pagers e rádios walkie-talkie explodiram por todo o país num ataque em duas ondas na terça-feira 17 e quarta-feira 18, numa suposta operação israelense, matando e ferindo os militantes do Hezbollah que os carregavam e civis próximos.
Na sexta-feira 20, um ataque aéreo israelense arrasou um prédio residencial em Beirute. O exército judeu disse que o ataque matou Ibrahim Aqil e outros dez líderes da unidade de comando de elite do Hezbollah Radwan. Até o fim da semana, 76 foram mortos, incluídas 12 mulheres e crianças, e mais de 3 mil ficaram feridos, mais do dobro do número total de vítimas desde o início da guerra, em 8 de outubro do ano passado.
Beirute tem sido alvo de constantes bombardeios – Imagem: AFP
A natureza repentina e brutal dos ataques destruiu qualquer sensação de segurança que a população libanesa poderia ter. “Pela primeira vez senti que a guerra está ao nosso redor, que não estamos mais seguros. Não sabemos onde será o próximo ataque israelense, estou evitando aglomerações ou áreas desconhecidas”, disse Amal Cherif, ativista de 52 anos e moradora do centro de Beirute. Quando os ataques de pagers aconteceram, ela ouviu gritos e ambulâncias, apesar de seu bairro não ser afiliado ao Hezbollah.
Grupos de direitos humanos condenaram os ataques de pagers por serem indiscriminados, e especialistas das Nações Unidas chamaram o ataque de uma violação “aterrorizante” do direito internacional. “Tais ataques podem constituir crimes de guerra de assassinato, ataque a civis e lançamento de ataques indiscriminados, além de violar o direito à vida”, listaram especialistas em direitos humanos da ONU em um comunicado.
O ministro da Defesa israelense, Yoav Gallant, disse logo após o ataque aéreo da sexta-feira 20 em Beirute que “a sequência de ações na nova fase continuará até que o nosso objetivo seja alcançado: o retorno seguro dos moradores do norte para suas casas”. No início da semana, ele anunciou que o “centro de gravidade” do exército israelense mudou para confrontar o Hezbollah no norte de Israel. Drones israelenses patrulharam os céus de Beirute até tarde da noite, e o zumbido de seus motores ecoou por toda a capital pela primeira vez desde o início da guerra. No sul, os moradores se referem aos drones MK israelenses como “Um Kamal”, comparando-os a um vizinho intrometido que está sempre a bisbilhotar. Em Gaza, eles são chamados de “vespas”, por seu ruído vibrante. Em Beirute, os moradores não desenvolveram nem o vocabulário nem o humor sombrio necessários para se referir aos drones como algo além do que eles são, ainda surpresos com sua presença acima de suas casas. Cherif disse ter fechado as janelas na sexta-feira 20 para barrar o som e poder dormir um pouco.
Em hospitais de todo o Líbano, centenas de pacientes adaptam-se a uma nova vida, muitos deles agora com deficiências permanentes. As explosões dos pagers deixaram muitos cegos e com uma das mãos amputada. Os pagers apitaram duas vezes, e então houve uma pausa, dando aos usuários tempo para trazê-los até a cabeça antes que explodissem. “Enucleação (remoção) do olho é um procedimento raramente realizado atualmente. Um dos nossos oftalmologistas seniores estava dizendo que fez mais enucleações em um dia do que em toda a sua carreira”, afirmou o ministro da Saúde do Líbano, Firas Abiad. Segundo o CEO do LAU Medical Center-Rizk Hospital em Beirute, Sami Rizk, eles pediriam a outros países a doação de próteses oculares.
Até agora, o número de feridos no Líbano passa de 3 mil
A série de ataques provocou união em todo o Líbano. No ano passado, o país ficou dividido sobre a guerra do Hezbollah com Israel, com alguns a defender a necessidade de forçar um cessar-fogo na Faixa de Gaza e outros a se ressentir do fato de o Líbano ser arrastado para o conflito. Foi o Hezbollah que atirou primeiro contra Israel em 8 de outubro, no que disse ser um ato de “solidariedade” ao ataque do Hamas na véspera. Desde então, o grupo libanês tem afirmado que não pararia seus ataques contra o norte de Israel até que fosse alcançado um cessar-fogo em Gaza. A luta matou mais de 500 cidadãos no Líbano, mais de 200 civis, e destruiu aldeias inteiras ao longo da fronteira com Israel.
Após as explosões dos pagers, as críticas à guerra do Hezbollah contra Israel cessaram. Formaram-se filas diante dos hospitais com gente disposta a doar sangue. As autoridades divulgaram uma declaração na qual afirmam que doações de rins não eram necessárias e que transplantes de olhos são impossíveis, depois que vários cidadãos ofereceram os seus. “Israel está nos atacando, não é mais contra o Hezbollah, é contra civis. Mesmo que sejamos contra o Hezbollah, quando Israel ataca o Líbano, ficamos uns ao lado dos outros”, disse Cherif.
O secretário-geral do Hezbollah, Hassan Nasrallah, agradeceu aos cidadãos libaneses por sua solidariedade durante um discurso na quinta-feira 19 e disse que os ataques foram uma “declaração de guerra” contra o Líbano. Ele prometeu que o grupo retaliaria. “Está claro que a solidariedade está aumentando dia após dia”, disse Kassam Kassir, analista próximo ao Hezbollah. Se esse apoio vai perdurar ou evaporar conforme o choque dos ataques de pagers terminar, será amplamente determinado pela forma que tomará a retaliação do grupo contra Israel. “A realidade é que o Hezbollah está enfrentando um grande desafio: como responder a Israel sem ir à guerra? Esta é a questão central”, analisa Kassir.
Gallant deslocou as atenções para o Líbano – Imagem: GPO/Ministério da Defesa de Israel
Atualização de CartaCapital: Na segunda-feira 23, os bombardeios israelenses se intensificaram. Ao menos 492 libaneses morreram, entre eles 35 crianças e 58 mulheres, informou o Ministério da Saúde do país, no dia mais mortal do conflito entre os dois países em duas décadas. O exército de Israel diz ter atingido 1,6 mil alvos para, em tese, destruir a infraestrutura do Hezbollah. Em resposta, o grupo libanês afirma ter lançado 200 foguetes contra o território inimigo, a maioria interceptada pelo sistema antimísseis. Dois civis teriam ficado feridos por estilhaços. Em desespero, libaneses lotam as estradas em busca de lugares mais seguros.
Novamente, as autoridades ocidentais limitaram-se a críticas superficiais ao governo de Benjamin Netanyahu. António Guterres, secretário-geral da ONU, afirmou esperar que o Líbano não se tornasse outra Gaza. O ainda chefe das Relações Exteriores da União Europeia, Josep Borrell, disse que “a escalada é extremamente perigosa e preocupante” e que “estamos quase em uma guerra total”. O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, garantiu trabalhar “para reduzir a tensão”, mas anunciou o envio de uma tropa adicional à região “por excesso de cautela”.
Crítico do governo Netanyahu, Gideon Levy escreveu em sua coluna no jornal israelense Haaretz que o alegado objetivo de garantir o retorno de 60 mil moradores às suas casas no norte do país, na fronteira com o Líbano, poderia ser obtido de outra maneira, por meio de um acordo de cessar-fogo em Gaza. “Então aqui estamos nós em outra guerra em uma escala muito grande. Mesmo que algo seja alcançado, será o mesmo que poderia ter sido alcançado ontem por meio da diplomacia.” Segundo as últimas pesquisas, 76% dos israelenses defendem o cessar-fogo. Netanyahu só ouve, porém, a ala extremista que sustenta a sua permanência na cadeira de primeiro-ministro. Caso o massacre acabe e o governo seja dissolvido, outro desejo da maioria da população, o premier teria de enfrentar nos tribunais as acusações de corrupção que pesam contra ele. •
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves .
Publicado na edição n° 1330 de CartaCapital, em 02 de outubro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Terrorismo de Estado’
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