Mundo
Terrificante ditador
Um livro conta a história de Benito Mussolini, o déspota gravemente enfermo física e moralmente


Foi publicado no Brasil, pela Editora Intrínseca, do Rio de Janeiro, um livro habilitado a despertar reflexões. Intitulado M, o Homem da Providência, de autoria do jornalista Antonio Scurati, ao cabo de uma pesquisa de longos anos e valorizado por inúmeros documentos. Trata-se de uma importante biografia de Benito Mussolini, um dos quatro ditadores mais vistosos do século passado, sem contar Mao Tsé-tung. Do confronto entre eles, o italiano é o maior responsável pela ideologia que, infelizmente, correu o mundo ao longo deste período.
Enquanto Stalin era a representação do poder absoluto, Hitler foi vítima de uma avassaladora demência, capaz de induzi-lo ao maior, terrificante genocídio da história humana. Franco e sua guerra foram o estopim do conflito mundial que seria deflagrado logo em seguida. Ele sobreviveu ao conflito e acabou por encaminhar uma saída conveniente a ele próprio e ao seu país, para desaguar no governo encabeçado por um conservador iluminado, Adolfo Suárez. Mussolini, no entanto, introduziu neste cenário uma visão daninha destinada a encarnar, por um longo e insuportável período, a essência do pensamento totalitário.
A partir da esquerda, Franco, o matreiro precavido, Stalin, o poder absoluto, Hitler, o maior genocida da história – Imagem: Ann Ronan/PL/Photo12/AFP e Arquivo/AFP
Com a chamada Marcha sobre Roma, Mussolini, como fundador do Partido Fascista, acabou se candidatando ao comando do governo, na esteira de uma caminhada sinistramente tragicômica que os comandantes do exército pretendiam sustar a canhonaços antes de entrar na capital.O rei Vitor Emanuel III negou autorização para tanto e Mussolini e os seus camaradas marcharam pela capital com a firme determinação de tomar o poder. Não adiantou a oposição do poeta dialetal Trilussa, do compositor Puccini ou do escritor Luigi Pirandello. Eleito Mussolini, não tardou a hora de ele mostrar a que viera. De saída mandou matar Giacomo Matteotti, líder da oposição socialista, fadado a morrer juntamente com seu partido e com qualquer outro que pretendesse se opor ao fascismo.
O livro de Scurati demonstra que o novo ditador, além de padecer de graves problemas de saúde, era irredutível maníaco sexual, sempre cercado de amantes ou de mulheres simplesmente violadas em suas visitas ao Palácio Veneza, no centro de Roma, onde havia instalado seu trono na sala mais espaçosa do edifício quinhentista. A ditadura de Mussolini pode ser dividida em dois capítulos. O primeiro se dá desde a sua deposição, em 25 de julho de 1943. O evento ocorreu em uma reunião do Grande Conselho fascista, por ocasião de uma das reuniões que ali periodicamente aconteciam. Seus próprios camaradas sabiam das violências de todos os tipos cometidas pelo chefe. E incluíam, entre os problemas em pauta, a guerra inevitavelmente voltada ao fracasso.
Hora da vingança: o genro Ciano fuzilado, Italo Balbo abatido em pleno voo pelo fogo amigo – Imagem: Arquivo/AFP e Marka/Alami/Fotoaren
Conheço bem a história deste evento porque dois dos conspiradores que derrubaram o Duce refugiaram-se depois no Brasil. O primeiro, Dino Grandi, foi nomeado embaixador em Londres em 1932, retornando em 1939 para exercer as funções de ministro da Justiça de Mussolini. O segundo foi Luigi Federzoni, que ocupou por dez anos a presidência do Senado italiano. Em São Paulo, Grandi morava a caminho do Jockey Club, depois da então Rua Iguatemi, que se tornaria Avenida Faria Lima. De noite, vestia uma capa sobre o pijama e ia visitar meu pai e a família, em uma travessa chamada Agrário de Souza, no Jardim Paulistano.
E nos contava, à beira de um copo de vinho, os eventos que aconteceram em seguida à derrubada do chefe, quando os conspiradores entregaram o poder ao rei e fugiram para o território neutro de Portugal, para então se estabelecerem no Brasil. Da viva voz de Dino Grandi e de Federzoni eu conheci a história daquele lance no qual Mussolini conseguiria mais tarde, no fim de 1944, voltar à ribalta para fundar, como tentativa de salvação in extremis, em Milão, a República de Salò, evocada anos após em um célebre filme de Pasolini. Foi então que explodiu a guerra civil no Norte da Itália, entre a dita República do ditador e os guerrilheiros partigiani.
Libertado por um comando nazista, Mussolini tornou-se presidente da República de Salò
Preso depois de derrubado, em julho de 1943, o ditador ficou detido em uma fortaleza nos Apeninos, de onde foi retirado por um comando nazista, em 1944. Em Milão, vingou a hora da vendetta. Foi quando mandou fuzilar antigos companheiros da Marcha sobre Roma. Em primeiro lugar, o próprio Galeazzo Ciano, seu genro, casado com a filha Edda, e seu ministro das Relações Exteriores por longo tempo. Na hora da execução, em que o pelotão atirava contra as costas dos condenados sentados, Ciano virou-se para encará-los e gritou “Viva a Itália”. Antes disso, já cuidara de eliminar outro opositor, o general Italo Balbo, abatido pelo “fogo amigo” enquanto voava no céu de Tobruk, durante a guerra da Líbia, quando os italianos haviam sido derrotados pelos nazistas no norte do Egito.
P.S. : A ignorância nativa tripudiou na eleição de Bolsonaro: “É fascista!” – Imagem: Arquivo/AP
A Alemanha já não era aquela das vitórias do general Rommel e das razias das SS. Ao pressentir a chegada de dias turvos, Mussolini fugiu de carro com a última amante na direção da Suíça. Os partigiani conseguiram prendê-lo quando chegava nas proximidades da fronteira, ao que se afirma com lingotes de ouro guardados no cofre do veículo. Lá ele dormiu sob a guarda dos guerrilheiros e, ao acordar, foi fuzilado juntamente com a namorada Claretta Petacci, graças à saudável determinação de evitar outra Nuremberg. Quanto ao tesouro, sua existência nunca foi provada, mas, se existiu, terá sido bem aplicado pela resistência guerrilheira. •
Publicado na edição n° 1253 de CartaCapital, em 05 de abril de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Terrificante ditador’
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