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Teatro de guerra

Por ora, Israel e Irã limitam-se a bravatas, mas qualquer passo em falso é capaz de entornar o caldo

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Desculpa perfeita. O ataque iraniano, previamente avisado, permitiu a Biden reafirmar o apoio incondicional a Israel e chancelar o massacre em Gaza ordenado por Bibi – Imagem: AFP/TV e Cameron Smith/Casa Branca Oficial
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A reunião do “gabinete de guerra” israelense na terça-feira 16, o terceiro encontro desde o lançamento dos mísseis e drones pelo Irã no sábado 13, manteve o suspense. O primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu, promete revidar, mas não disse quando nem com qual intensidade. Desenrola-se, por enquanto, uma coreografia em campo minado, na qual um único passo em falso pode provocar a definitiva escalada do conflito no Oriente Médio, além das costumeiras ameaças. Enquanto Daniel ­Hagari, porta-voz das Forças Armadas de Israel, garante que os agressores “não ficarão impunes”, Ebrahim Raisi, presidente iraniano, adverte: o “menor movimento” contra o país receberá em troca “uma resposta feroz, generalizada e dolorosa”.

Pelo histórico, antigo e recente, é pouco provável que Netanyahu, cuja permanência no poder depende do prolongamento da ocupação na Faixa de Gaza e da provocação aos inimigos na região, atenda aos apelos dos aliados ocidentais por algum grau de moderação na desforra. O desespero e a irresponsabilidade do premier, acuado internamente, tornam imprevisível o desfecho do confronto. Uma escalada no embate com Teerã inevitavelmente envolveria os Estados Unidos, a contragosto. Por força de atração, viriam o Reino Unido e a União Europeia, e de repulsa, a China e a Rússia. Seis meses de esforços diplomáticos iriam pelo ralo.

Não é prudente descartar o cálculo político israelense ao atear fogo no “parque”. A matança indiscriminada em Gaza afastou velhos parceiros, a ponto de os Estados Unidos enviarem a Tel-Aviv um claro sinal de descontentamento ao se abster na votação do Conselho de Segurança das Nações Unidas que aprovou a resolução pelo imediato cessar-fogo. Um certo abandono norte-americano coincidiu com o crescente número de líderes mundiais que finalmente passaram a usar a palavra correta para descrever a vingança contra os palestinos: genocídio. Uma capa recente da revista britânica The ­Economist, porta-voz da elite financeira global e insuspeita de “antissemitismo”, deu o tom. “Israel sozinho”, dizia o título. De repente, uma bomba lançada contra a embaixada do Irã em Damasco, na Síria, mata dois generais e cinco oficiais da Guarda Revolucionária, ataque negado por Israel e que viola as mais básicas regras das leis internacionais. Uma violência assim descrita por especialistas independentes a serviço da ONU: “Todos os países estão proibidos de privar arbitrariamente os indivíduos do seu direito à vida em operações militares no estrangeiro, inclusive no combate ao terrorismo. Os assassinatos em territórios estrangeiros são arbitrários quando não são autorizados pelo direito internacional”.

Netanyahu aproveita a oportunidade para trocar a imagem de agressor pela de agredido

A sequência dos fatos não fugiu ao script. O alerta dos aiatolás, anunciado com prudente antecedência, pareceu ter o objetivo de dar uma satisfação aos iranianos. Dos 300 drones e mísseis, lançados de bases distantes dos alvos, 99% foram interceptados pelo sistema de defesa israe­lense, por navios dos EUA e por parceiros no Oriente Médio. Os poucos que driblaram os escudos de defesa e entraram em território israelense atingiram alvos militares sem danos graves à infraestrutura nem mortes. As ruas de Teerã andam, no entanto, repletas de nacionalistas em festa, orgulhosos da retaliação ao “pequeno Satã”. Ao mesmo tempo, Netanyahu livrou-se momentaneamente da imagem de agressor – e de violador do direito internacional – e adotou as vestes humildes de agredido. Bom para o premier, bom para os parceiros ocidentais, em particular os Estados Unidos, novamente autorizados a ignorar a barbárie contra os palestinos, a pregar o direito inalienável de Israel à autodefesa e a investir contra o inimigo preferido na região, o Irã.

O presidente norte-americano, Joe ­Biden, às voltas com a campanha presidencial, aproveitou a deixa. No domingo 14, poucas horas depois do ataque iraniano, o democrata, sempre pronto a bloquear qualquer sanção a Israel, convocou uma reunião do G7 e do Conselho de Segurança da ONU para propor medidas contra Teerã. Por conta do bloqueio de China e Rússia, a reunião terminou em impasse. Embora tenha condenado de maneira inequívoca o ataque iraniano, ­António Guterres, diretor-geral das Nações Unidas, voltou a clamar por um cessar-fogo e pela paz. “É o momento de recuar do abismo”, discursou, “para evitar qualquer ação que possa levar a grandes confrontos militares em múltiplas frentes no Oriente Médio”. Em paralelo, Washington anunciou a intenção de adotar novos bloqueios econômicos e financeiros contra o regime dos aiatolás, mas rejeitou, por ora, uma ação militar em apoio a Israel.

Em meio ao teatro da guerra, o drama dos palestinos ficou em segundo plano, o que não significa uma melhora na situação. Ao contrário. Na quarta-feira 17, o bombardeio de um mercado no campo de refugiados de Maghazi deixou ao menos 56 mortos. O número de vítimas fatais desde o início dos ataques israelenses, em outubro, aproxima-se dos 35 mil. Segundo a ONU, cerca de 40% da ajuda humanitária foi ou tem sido bloqueada na fronteira de Gaza, o que aumenta a fome da população, limita o atendimento médico e agrava as doenças. “Lidamos com essa dança: damos um passo para a frente, dois para trás, ou dois passos para a frente, um passo para trás, o que nos deixa basicamente no mesmo ponto”, lamenta ­Andrea De Domenico, chefe do escritório de coordenação de Assuntos Humanitários no Território Palestino Ocupado. “Para cada nova oportunidade encontraremos mais um desafio. Água, saneamento e saúde são fundamentais para conter a fome.”

P.S.: O jornalismo, como de costume, é outra vítima. Além dos cerca de 70 profissionais mortos em Gaza até o momento e da expulsão da rede de tevê Al Jazeera de Israel, por sua cobertura crítica em relação ao governo Netanyahu, o jornal norte-americano The New York Times baixou um édito interno. Ao escrever sobre os acontecimentos na região, os funcionários da casa estão proibidos de usar os seguintes termos: “genocídio”, “limpeza étnica” e “território ocupado”. Tudo, é claro, em nome da precisão e da imparcialidade. •

Publicado na edição n° 1307 de CartaCapital, em 24 de abril de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Teatro de guerra’

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