Mundo
Tabu quebrado
Os ataques cruzados e diretos entre Irã e Israel elevam a novo patamar a crise no Oriente Médio


Há anos Israel e Irã travam uma “guerra nas sombras”, com ataques indiretos por meio de forças substitutas, assassinatos, informantes, espiões e meios secretos, híbridos e não militares. Agora, essa guerra não declarada e em geral silenciosa está totalmente exposta. Tornou-se uma guerra de tiros, é barulhenta, está em escala e não tem um fim previsível. Isso não quer dizer que o ataque aéreo israelense em larga escala, em três ondas, contra Teerã e outros alvos no Irã na manhã do sábado 26 significa que agora os dois inimigos estejam envolvidos em um conflito total. Esta ainda não é a conflagração em grande escala e em toda a região que tantos temem no Oriente Médio. Ela pode estar perto, mas ainda está no futuro.
O que o ataque de Israel, em retaliação à avalanche de 181 mísseis do Irã no início de outubro, significa é a ultrapassagem de mais uma barreira psicológica. Antes dos massacres de israelenses em 7 de outubro de 2023 pelo Hamas, aliado do Irã, era difícil imaginar um confronto militar cara a cara em território do outro. Parecia muito arriscado. Agora está normalizado. O governo de extrema-direita de Tel-Aviv expandiu gradualmente, alguns diriam intencionalmente, a guerra de Gaza para retaliar os representantes de Teerã.
Desde a revolução islâmica de 1979, o Irã tem apoiado com veemência os direitos palestinos e prometeu destruir Israel. O país criou o que os israelenses chamam de “anel de fogo”, um “eixo de resistência” que envolve milícias xiitas como o Hezbollah no Líbano, os houthis no Iêmen e grupos no Iraque e na Síria, assim como os islâmicos sunitas do Hamas.
Desde 7 de outubro de 2023, o governo Netanyahu, gradualmente, alguns diriam intencionalmente, expandiu a guerra de Gaza para revidar as ações desses grupos – e do próprio Irã. Netanyahu há muito vê o cerco, especialmente os ataques incessantes de foguetes do Hezbollah e o programa nuclear do Irã, como ameaças existenciais. Algo tinha de ceder. E em 1º de abril deste ano, cedeu. Israel bombardeou o consulado diplomático do Irã em Damasco, matando dois generais. Alegou que eles estavam planejando ataques. O Irã, indignado, revidou em 13 de abril, montando seu primeiro ataque militar direto em território israelense. O tabu foi quebrado.
Israel posteriormente retaliou na mesma moeda, mas nenhum dos lados causou muito dano, talvez deliberadamente. A calma resultante não poderia, no entanto, durar. Dois assassinatos israelenses devastadores e humilhantes, o do chefe político do Hamas, Ismail Haniyeh, em Teerã em julho, e o do líder do Hezbollah, Hassan Nasrallah, em Beirute no mês passado, mudaram a sintonia mais uma vez. O líder supremo do Irã, aiatolá Ali Khamenei, linha-dura antiocidental, era amigo pessoal de Nasrallah e teria ficado profundamente magoado com sua morte. Khamenei também declarou que o assassinato de Haniyeh, enquanto este era um hóspede de Teerã, foi um insulto que não poderia ser suportado. Então, em 1º de outubro, o Irã lançou seu segundo e maior ataque direto.
Esta é a ofensiva à qual Israel respondeu no sábado 26, após três semanas a manter a região na dúvida sobre o que faria. Houve desacordo nos níveis mais altos. Os belicosos argumentaram que Israel deveria usar essa oportunidade para atingir as instalações nucleares e energéticas do Irã, até mesmo para tentar eliminar Khamenei e outros líderes importantes.
O fato de que Israel se limitou a atingir bases militares e aparentemente tomou cuidado para evitar baixas civis tem sido visto como um sucesso da diplomacia norte-americana. O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, pressionou Netanyahu em particular para não contribuir mais para a escalada. Ele enviou seu secretário de Estado, Antony Blinken, a Jerusalém para enfatizar essa questão. Biden parece ter prevalecido, desta vez – uma rara ocasião, desde 7 de outubro, em que Netanyahu aceitou o conselho norte-americano. Mas o líder israelense evidentemente ainda se reserva o direito de atingir instalações nucleares e outros alvos de alto valor caso Teerã retalie novamente. E as defesas aéreas danificadas do Irã talvez estejam menos capazes de se defender de ataques futuros.
Por muitos anos, Tel-Aviv e Teerã se agrediram de forma indireta
Por saber que tudo isso ainda poderia sair do controle, a mensagem do Pentágono para o Irã foi cristalina: nem pense em revidar. Pare e desista. Trace uma linha. A mesma mensagem foi repetida por Keir Starmer, primeiro-ministro do Reino Unido, na cúpula da Comunidade Britânica em Samoa. “Estou certo de que Israel tem o direito de se defender contra a agressão iraniana. Estou igualmente certo de que precisamos evitar uma escalada regional maior e pedir a todos os lados que mostrem contenção. O Irã não deve responder”, disse Starmer. “Continuaremos a trabalhar com aliados para acalmar a situação.”
A poucos dias de uma eleição presidencial acirrada, na qual Donald Trump alega que Biden e sua protegida, Kamala Harris, falham irremediavelmente em controlar a crise, Washington quer muito acalmar as coisas. Por esse mesmo motivo, o Pentágono enfatizou que as forças dos EUA não estiveram envolvidas nos últimos ataques israelenses. Os primeiros indícios sugerem que o Irã entendeu a mensagem, está inclinado a minimizar essa última rodada de hostilidades e não responderá ao fogo imediatamente. Mas também não faltam guerreiros em Teerã. Eles pressionarão por ações mais duras.
As últimas tentativas inúteis de Blinken de retomar as negociações para um cessar-fogo em Gaza e um acordo de reféns demonstraram que as causas originais de toda essa inimizade corrosiva, violência e instabilidade crônica permanecem fundamentalmente sem solução. Mesmo com Israel e Irã a trocar golpes, até agora com uma das mãos amarradas nas costas, a terrível tragédia humana em Gaza continua descontrolada – e, pior, é empurrada para fora do noticiário. Entretanto, a menos que Gaza e a causa palestina mais ampla sejam resolvidas, é apenas uma questão de tempo para que a próxima rodada, ainda mais perigosa, de combates diretos entre Israel e Irã ocorra por todo o Oriente Médio. •
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.
Publicado na edição n° 1335 de CartaCapital, em 06 de novembro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Tabu quebrado’
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