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Supremacia do Estado mínimo nos Estados Unidos não passa de mito

Entre 1900 e 2012, os gastos do governo dos EUA aumentaram de 12% para 35,6% do PIB, e continuam a crescer

Foto: Megan Jelinger/AFP — Getty Images
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Em 2 de dezembro, 68 dias após Jair Bolsonaro declarar seu amor a Donald Trump em um desconfortável encontro em Washington, o governo dos Estados Unidos anunciou novas tarifas protecionistas contra as importações de aço brasileiro, adicionando mais um produto à longa lista de importações tributáveis, uma elevação de 63 bilhões de dólares durante o último ano fiscal.

A ideia de usar tarifas de importação, muitas vezes combinadas com a redução de impostos para empresas nacionais, em busca de proteção à indústria e à produção agrícola, é um dos princípios-chave da economia keynesiana e algo tradicionalmente rejeitado pelos Chicago Boys”. Essa legião de economistas treinados na Universidade de Chicago e os políticos que promovem suas ideias nunca parecem cansar-se de citar a economia dos EUA como exemplo do sucesso do Estado mínimo. Na verdade, é um tema recorrente no mais recente manifesto da Aliança pelo Brasil, o novo partido de Bolsonaro. Pode parecer fazer muito sentido no papel, mas o problema é que a ideia de que os EUA representem qualquer tipo de Estado mínimo é uma fantasia, ou, como se diz por aí, fake news. Basta  folhear as 3.713 páginas da 2019 Harmonized Tariff Schedule, o guia de tarifas de importação cobradas pelo governo americano.

Desde que Milton Friedman e seus chamados Chicago Boys apoiaram a sangrenta e corrupta ditadura de Augusto Pinochet, no Chile, o governo dos EUA e seus aliados, entre eles o Banco Mundial e os think tanks corporativos, como os institutos Cato, Heritage e Mises, pregam as virtudes da privatização de serviços governamentais e dos acordos de livre-comércio, como se fossem dogmas religiosos, para países da América Latina. 

 

Historicamente, a implementação dessas políticas costuma acontecer, de forma ligeira, em países assolados por golpes de Estado. O exemplo de Honduras vem à mente. Após o golpe de 2009, que Hilary Clinton se vangloria de apoiar em sua autobiografia, o novo governo anunciou a intenção, com o apoio do professor da Universidade de Stanford, Paul Romer, de privatizar completamente a administração de algumas cidades.

Os EUA não praticam, no entanto, o que pregam para a América Latina. Entre 1900 e 2012, os gastos do governo dos EUA aumentaram de 12% para 35,6% do PIB, e continuam a crescer. Mesmo sem levar em consideração as administrações estaduais e locais, o orçamento federal dos EUA para o atual ano fiscal é de 4,75 trilhões de dólares. É isso mesmo: o governo federal dos EUA gastará três vezes mais do que o tamanho total do PIB do Brasil. Além disso, estudos mostram que, quando comparados a outros países desenvolvidos, os gastos públicos americanos são extremamente ineficientes. Os dispêndios militares projetados neste ano somam 989 bilhões de dólares. E até o Departamento de Defesa admite tratar-se de um orçamento grande demais.

Falemos do Ensino Superior. Os Estados Unidos gastam uma porcentagem maior do PIB nas universidades públicas do que países como França e Alemanha. Estes, como o Brasil, garantem o acesso gratuito – o que não acontece nos EUA. Mas, ao contrário de países como a França, que privilegiam os investimentos em pesquisas, grande parte dos gastos com universidades públicas estadunidenses serve como subsídio indireto à corrompida indústria da construção civil, que constrói e renova grandes estádios esportivos. Um dos casos mais recentes é o da arena de futebol americano da Texas A&M University, orçado em 450 milhões de dólares e executado pela empreiteira Manhatten-Vaughn em 2014. A reforma aumentou a capacidade do estádio de 82 mil para 102 mil torcedores. Mas, enquanto o complexo abriga menos de 20 jogos por ano, os alunos são obrigados a pagar uma mensalidade de mil dólares.

Os Estados Unidos não praticam o que pregam para a América Latina

Como dizia Mark Twain, mais de cem anos atrás, existem três tipos de mentiras: mentiras, malditas mentiras e estatísticas. Economistas do Banco Mundial e outros, defensores das virtudes do Estado mínimo como religião, muitas vezes afirmam que os EUA têm níveis ligeiramente mais baixos de gastos em comparação a outros países desenvolvidos, 38% do PIB em comparação com os 45% da União Europeia. Isso poderia ser uma prova de que o Estado mínimo funcionou na América do Norte? Quando tirados do contexto, talvez, mas os EUA têm o maior sistema de bem-estar corporativo do mundo e isso é feito principalmente por meio de distribuições diretas, como os 8 bilhões de dólares entregues à Boeing em 2013 por meio do abatimento de impostos, raramente incluídos nas estatísticas usadas pelos economistas que argumentam que os EUA são um exemplo de Estado mínimo. Algumas das maiores empresas americanas mal pagam impostos. A Amazon não apenas pagou zero em tributos federais sobre seus 11 bilhões de dólares de lucros no ano passado como recebeu um reembolso de 129 milhões. A General Motors, que ganhou 10 bilhões de dólares de graça, como parte do resgate governamental calculado em 80 bilhões à indústria automobilística em 2014, ficou livre de taxações em 2018. Como o economista Will Hutton escreveu recentemente, essa tradição americana de mamatas para o setor empresarial resultou no fortalecimento de monopólios e na morte da concorrência.

O fato de os gastos governamentais nos EUA serem um pouco mais baixos que aqueles da União Europeia, mas as doações corporativas e os subsídios fiscais serem maiores, não parece arbitrário. Muitos economistas argumentam que o resultado da estratégia não levou a uma redução da interferência do Estado na economia, mas há uma enorme transferência de riqueza das mãos dos cidadãos comuns para os cofres das empresas multinacionais. Como escreve o economista britânico Nicolas Hildyard: “O ‘mercado livre’ precisa da proteção do Estado – e de seus poderes de execução. O Estado mínimo é, simplesmente, utópico – no sentido original da palavra, ele não existe em lugar algum”.

Até a Universidade de Chicago não escapa dessa tradição. De acordo com o Washington Post, a universidade, particular, recebeu no ano passado 279 milhões de dólares em subsídios dos governos federal, estadual e municipal. Se a líder de torcida acadêmica mais importante para o Estado mínimo é incapaz de sobreviver sem a mamata do governo, por que devemos acreditar que o modelo traria algum benefício para o Brasil?

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