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Sob novo governo, Colômbia reafirma paridade de gênero no Executivo e promete redução de desigualdades

O Congresso do País, por exemplo, agora tem 29,8% de mulheres, número que nunca havia sido alcançado

Os novos presidentes da Colômbia, Gustavo Petro e Francia Márquez. Foto: Juan Barreto/AFP
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Antes de Francia Márquez, a vice-presidenta colombiana que assumiu o cargo no último domingo, em Bogotá, apenas a argentina Cristina Kirchner havia ganho tanta projeção como vice do executivo federal na América Latina. Mas Kirchner, ao tomar posse ao lado do presidente Alberto Fernández, em 2019, já havia sido presidenta da Argentina, acumulava dois mandatos como senadora – um deles exerceu enquanto também era primeira-dama -, além de ter sido deputada federal. Francia, ao lado do presidente Gustavo Petro, substituiu uma outra mulher, Marta Lucía Ramírez, a primeira a estar no posto de vice-presidenta, que assim como Kirchner acumula uma longa carreira de cargos, tendo sido ministra, senadora e ainda embaixadora da Colômbia na França antes de estar na vice-presidência.

Francia, mesmo sem cargo eletivo anteriormente, tem sua consistente trajetória política construída nos movimentos de mulheres negras e ambientalistas, em defesa do direito à terra e dos direitos políticos de uma imensa comunidade que ela representa: os afrodescentes colombianos. A distância entre Francia e Marta Lucía está longe de ser somente a representatividade étnico-racial. O novo governo tem uma agenda e um discurso que vão além da afirmação da diversidade e representatividade numérica. Petro e Francia afirmam que é hora de a Colômbia avançar em pautas que atravessam gênero e raça de forma muito profunda: justiça climática, distribuição de renda e construção de novos acordos de paz no território.

No discurso presidencial, Petro mostrou disposição de ser voz para a região ao afirmar que “é hora de uma nova convenção internacional que aceite que a guerra às drogas fracassou ao deixar mais de 1 milhão de latino-americanos assassinados em 40 anos”. Também reafirmou seu compromisso com a agenda feminista, incorporada desde a campanha no discurso de Francia:

“Que a igualdade de gênero seja possível. Não podemos continuar permitindo que as mulheres tenham menos oportunidades de trabalho e ganhem menos que os homens, que tenham que dedicar o triplo ou o quádruplo de horas às tarefas de cuidado, que estejam menos representadas em nossas instituições. Já é hora de combater todas essas desigualdades e equilibrar a balança”.

A Gênero e Número e o Instituto Alziras buscam explicar aqui o contexto colombiano recente de participação das mulheres na política, que tem na figura de Francia Márquez um símbolo da “nova esquerda latino-americana”.

Francia Márquez, na primeira reunião de trabalho como vice-presidenta da Colômbia na Casa de Nariño. Foto: Divulgação

Representatividade tem sido rota para vitórias das mulheres na Colômbia

A Colômbia é o país latino com a segunda maior população de afrodescendentes, atrás apenas do Brasil. São pelo menos 11%, de acordo com censo nacional. Cerca de 5 milhões de pessoas. Assim como no Brasil, é uma minoria política subrepresentada nos espaços de poder, como fica evidente na foto abaixo, uma imagem desta semana, da primeira reunião da equipe do novo governo, ainda excessivamente branco. São nove ministras até o momento, entre elas a também afrodescendente María Isabel Urrutia, no Ministério do Esporte. 

Gustavo Petro e sua equipe na primeira reunião de trabalho do governo colombiano após a posse. Foto: Divulgação

A representatividade feminina nos poderes executivo e legislativo vem sendo buscada de forma articulada na Colômbia nos últimos anos, envolvendo ativistas, parlamentares e até mesmo ex-guerrilheiras. Reflexo disso é a participação das mulheres nos gabinetes ministeriais que saltou em mais de 23% no governo antecessor, de Iván Duque, alcançando em 2018 a paridade de gênero pela primeira vez (veja a visualização abaixo). Mas a promessa de campanha do ex-presidente de criar uma equipe ministerial paritária, mesmo cumprida inicialmente, não se manteve até o fim do governo, após mudanças nas pastas em 2021 que fizeram novamente a balança pender para a maioria masculina. 

O gráfico acima apresenta os últimos três períodos presidenciais da Colômbia. O período mais recente, do Governo Iván Duque, que acabou em 07 de agosto, foi também o período em que a Colômbia passou a ocupar o terceiro lugar na América Latina em representatividade de mulheres no Executivo federal (veja a visualização abaixo). O salto tão expressivo de representatividade entre os governos de Juan Manuel Santos e Iván Duque é para ser celebrado, assim como o crescimento de 9,1% da participação feminina no Legislativo colombiano, nas eleições de março deste ano. O Congresso do país agora tem 29,8% de mulheres, número que nunca havia sido alcançado. Essa maior representatividade influencia na tomada de decisões e na construção da autonomia política das mulheres. Não é coincidência que também neste ano a Colômbia tenha conseguido descriminalizar o aborto no país. A via para a conquista foi a Suprema Corte, mas reflete o clima do país.

Sob uma leitura feminista, algo que precisa ser analisado é o quanto essa representatividade  vem acompanhada de políticas que visam redução de desigualdades. A Nicarágua, país com altos índices de violência contra a mulher e onde todo tipo de aborto é criminalizado, ser líder de representatividade feminina ministerial na região sinaliza o quanto o projeto político importa, além dos números.

No contexto colombiano, a mudança nas estruturas desiguais em gênero e raça pode estar em curso, diferentemente da Nicarágua, que vive hoje sob o governo ditatorial de Daniel Ortega. O protagonismo das mulheres como formuladoras de política é uma realidade no país e inclusive teve espaço na construção do histórico Acordo de Paz firmado em 2016 entre o governo de Juan Manuel Santos e as Farc, que contou com um subcomitê de gênero à época e reconheceu a necessidade de garantir direitos das mulheres nas zonas rurais, das vítimas dos conflitos e melhorar a representatividade política. Houve embates antes e após o plebiscito nacional sobre as questões de gênero, inclusive a palavra “gênero” foi substituída por “mulheres” na versão final do Acordo, assinado em novembro de 2016. Mas o protagonismo das mulheres já estava dado, apesar das resistências.

Já a igualdade de gênero é um compromisso assumido no “Plan Nacional de Desarrollo 2018-2022: Pacto por Colombia, pacto por la equidad” (Plano Nacional de Desenvolvimento 2018-2022: Pacto pela Colômbia, Pacto pela Equidade) e uma demanda, obviamente, dos movimentos de mulheres colombianas, que vêm se organizando desde os anos 80. Foi em Bogotá, em 1979, o Primeiro Encontro Feminista Latino-americano e caribenho.  

Justiça climática na Colômbia inclui desafio de proteger ativistas

O enfrentamento da crise climática é assunto central e emergencial na Colômbia, onde não é possível olhar para essa pauta sem discutir a violência contra ativistas e ambientalistas. Na divulgação do relatório da Global Witness, em 2021, a dimensão do problema: “Pelo segundo ano consecutivo, em 2020 a Colômbia registrou o maior número de assassinatos, com 65 defensores da terra e do meio ambiente assassinados no contexto de ataques generalizados a defensores dos direitos humanos e líderes comunitários em todo o país, apesar das esperanças do acordo de paz de 2016. Os povos indígenas foram particularmente impactados, e a pandemia de covid-19 só serviu para piorar a situação”.

A vice-presidenta Francia Márquez é uma sobrevivente e também integra as estatísticas da população afrodescendente “desplazada” (que passou por deslocamento forçado). Em 2019, após receber ameaças pelo seu ativismo contra a mineração ilegal, foi alvo de um atentado de granada (veja tuíte após o ocorrido). As ameaças já ocorriam há anos. Em 2014, ela já havia deixado La Toma, seu território, com os filhos. Recentemente no Brasil, Francia falou a mulheres negras sobre a necessidade de estar vigilante na segurança.  O Governo Petro se comprometeu a enfrentar a escalada de violência contra ativistas.

Além da segurança, um projeto efetivamente inovador é o objetivo de Francia e Petro. O plano discutido até agora inclui a desescalada gradual do modelo de produção extrativista, a transição para a geração de energias renováveis até o aumento da produtividade agrícola com geração de empregos pela agroecologia para aqueles que foram removidos de suas terras. A valorização dos saberes ancestrais como ferramentas para justiça climática também está no discurso.

A coordenadora de política climática do Instituto Clima e Sociedade, Marina Marçal destaca que o modelo poderia servir ao Brasil. “O plano traz a ‘pachamama’ e a preocupação com a justiça climática com a centralidade que merece, tanto em aspectos econômicos como sociais. Um estado que possa impulsionar a economia com justiça social como motor da vida é, sem dúvidas, um modelo de ‘vivir saboroso’ que o Brasil poderia importar.”

Francia Márquez no Brasil: o encontro para seguirmos a reinvenção afrocentrada

Francia Màrquez em encontro com ativistas e parlamentares negras brasileiras. Foto: Mayara Donaria

Dias antes de sua posse junto ao presidente Gustavo Petro, a vice-presidenta da Colômbia, Francia Márquez, esteve em viagem por países da América Latina realizando diálogos para este novo capítulo da história de seu país, em um verdadeiro ‘cambio’ das experiências em prol dos direitos humanos, da justiça climática e da igualdade de gênero e raça. Mas sem dúvida foi no Brasil que ocorreu o encontro que carrega a maior força simbólica. No dia 27 de julho (aniversário da vereadora Marielle Franco e data da inauguração da estátua em sua homenagem), o Rio de Janeiro abrigou o maior encontro político amefricano deste ano, quiçá da última década.

A professora de Direito Constitucional da PUC-Rio Thula Pires, com base nos trabalhos de Lélia Gonzalez, nos conta que a amefricanidade é um categoria político-cultural, que ao mesmo tempo denuncia o racismo e o sexismo fruto do processo colonial e propõe um resgate da dimensão política da cultura ameríndia e africana, implicando, de certa forma, na reinvenção dos direitos humanos. Nas palavras da professora Thula, a amefricanidade “carrega um sentido positivo, da ‘exploração criadora’, da reinvenção afrocentrada da vida na diáspora”. Vida esta em sua plenitude, que parte da terra para o poder, e não ao contrário, e que tem em Francia Márquez uma expressão dessa prática. Assim, em uma espécie de Ágora brasileira, um quilombo foi levantado por mulheres negras naquele dia – dos bastidores à fotografia do poder.

Ativistas, parlamentares, pré-candidatas dialogaram com a vice-presidenta colombiana sobre suas agendas, e puderam ver em Márquez a presentificação de suas lutas e histórias, não apenas na imagem mas de forma ainda mais evidente, nas bandeiras comuns aqui e lá. Da indignação diante do racismo ambiental até as ações de proteção e defesa das terras quilombolas, ribeirinhas e indígenas, passando pelo orçamento público, o enfrentamento às violências de gênero e racial (também na política), a geração de emprego e renda e o acesso à comida e a saúde, absolutamente tudo que se faz necessário para o hoje e principalmente, para que seja possível um amanhã, esteve em pauta.

Nas palavras da própria Francia, “Hoje temos um grande desafio de trabalhar juntas! Mulheres negras na Colômbia e mulheres negras no Brasil, por dignificar a vida em todo o planeta. É um desafio enorme.Enquanto existirem mulheres sendo assassinadas, que sigam sendo violentadas. Enquanto existirem meninos e meninas sendo assassinados, enquanto existirem jovens sendo assassinados, nossa luta não para. Então, isto não é o fim. Chegar à vice-presidência ou à presidência não é o fim, é um meio. O fim é conquistar a dignidade do nosso povo.” 

A vice-presidenta Francia vem reescrevendo o significado central dos direitos humanos: a produção de políticas públicas para a superação das desigualdades, até que a dignidade deixe de ser somente um princípio e se torne costume. É a nova política no poder, desta vez, amefricana, que nos convida a todos para viver sabroso. E nos enche de esperança.

*Giulliana Bianconi é diretora e Vitória Régia da Silva é editora-assistente da Gênero e Número; Roberta Eugênio e Clara de Sá são codiretoras do Instituto Alziras.

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