Mundo

Sob nova ditadura

Os manifestantes voltam à Praça Tahrir, agora para protestar contra Mohamed Morsi, o substituto do ditador Mubarak que imita o deposto

Com o risco de uma guerra civil, o mais populoso país árabe enfrenta um regime de exceção islamita. Foto: Ed Giles/ Getty Images
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Namees Arnous está furiosa. Ela fala em uma nova revolução no Egito, após a que derrubou o ditador Hosni Mubarak, em janeiro de 2011. Desta vez, o objetivo dos manifestantes da simbólica Praça Tahrir (e país afora) é derrubar Mohamed Morsi, o presidente que em 22 de novembro promulgou um decreto pelo qual confere a si direitos plenos. “Depusemos um ditador laico, e colocamos no posto um déspota islamita da Irmandade Muçulmana”, resume Arnous, diretora-executiva da Bokranews.com, estação de rádio e notícias online.

 

 

O quadro político do país mais populoso do mundo árabe é mais uma vez crítico. Mohamed el-Baradei, o ex-presidente da Agência Internacional de Energia Atômica, Nobel da Paz e coordenador da Frente de Salvação Nacional (formada pelos partidos contrários ao decreto de Morsi, que por ironia do destino foi capaz de unir as esquerdas), não descarta uma guerra civil. El-Baradei parece ter razão. Proliferam manifestações e atos de violência contra o líder egípcio eleito em junho, o quinto mandatário do país e o primeiro islamita.

Na terça-feira 27, 100 mil pessoas tomaram as ruas da capital, Cairo, para protestar contra os poderes expandidos de Morsi, um engenheiro de 61 anos. Um dos alvos prediletos dos manifestantes são as representações da Irmandade Muçulmana e de sua artéria política, o Partido Liberdade e Justiça. Na capital, as Forças Armadas puderam defender a sede da legenda islamita. Em cidades como Alexandria, os escritórios do grupo religioso foram, porém, saqueados. Outra sede da agremiação islamita foi incendiada. Centenas de pessoas foram feridas nos confrontos com a polícia, e na última semana houve quatro mortes. Uma das vítimas, Fathi Gharib, da Aliança Popular Socialista, faleceu ao inalar gás lacrimogêneo lançado pelas forças de repressão.

Os protestos continuam. Na sexta-feira 30, está programado um protesto gigante: cerca de 1 milhão de manifestações contra o “golpe islamita” varreriam o Egito, prometiam os organizadores alguns dias antes de saírem às ruas. No sábado, aliados, salafitas e integrantes da Irmandade Muçulmana planejavam ir a público para defender Morsi. O objetivo de organizar os protestos em dias diferentes era, obviamente, o de evitar um confronto com potencial para terminar de maneira trágica. Pode sair daí o estopim da tal guerra civil temida por El-Baradei.

Em um país dividido entre liberais aliados a seculares e islamitas, a questão é saber até quando durará o impasse. “É difícil fazer previsões”, diz em entrevista por telefone Egbert Harmsen, especialista em Oriente Médio da Universidade de Leiden, na Holanda. No momento, prossegue o acadêmico, Morsi diz ter optado por uma ditadura para salvar a revolução de janeiro do ano passado. “Quando soubermos se ele vai ou não manter a sua atual posição de imunidade legal, as mudanças ocorrerão com mais rapidez”, avalia. Em suma, brevemente os conflitos arrefecerão ou intensificarão.

Mesmo integrantes da Irmandade Muçulmana se inquietaram com os superpoderes. Em um discurso calculadamente conciliatório, o presidente tentou acalmar os ânimos. Disse estar “orgulhoso” de presidir um país com uma oposição vocal. No entanto, o decreto teria sido o único meio de garantir os objetivos da revolução de 2011 e completar a transição democrática. Igualmente importante, avalia Morsi, é realizar as corretas medidas econômicas. Erradicar a corrupção foi outro assunto abordado pelo presidente. “Eu nunca infringirei os direitos pelos quais passei minha vida lutando”, reforçou.

Harmsen lembra que as ditaduras sempre se iniciam com a suposta necessidade de medidas de emergência. Foi o caso do Chile, quando Augusto Pinochet deu seu golpe, mas também na Alemanha, quando Adolph Hitler ampliou seu poder. Alerta Harmsen: “Veja, não estou a comparar Morsi e Pinochet com Hitler, mas o princípio que o levou a se transformar em ditador por decreto são os mesmos dos déspotas do Chile e da Alemanha”.

Saltam aos olhos três artigos do decreto de Morsi. No segundo item, lê-se: “Todas as proclamações constitucionais do presidente egípcio desde a sua entrada na função são definitivas”. O quinto artigo estipula que “nenhuma corte de Justiça poderá suspender a Assembleia (Câmara dos Deputados) e o Senado”. O sexto artigo refere-se à defesa da revolução de 2011, à segurança nacional e ao bom funcionamento das instituições do Estado. Nesses casos, “o presidente da República estará autorizado a tomar todas as medidas necessárias”.

O decreto, cinicamente aclamado por Morsi como uma declaração constitucional, é visto pelos magistrados como um ataque contra o Judiciário. E eles têm razão. Pierre Puchot, do website Mediapart.fr, argumenta, porém, que a demissão do procurador-geral Abdel Meguid Mahmodu por Talaat Ibrahim, integrante do movimento pela independência dos juízes de 2005 e por isso enviado ao Kuwait pelo ex-ditador Mubarak, revela a credibilidade de Ibrahim. Por outro lado, a falta de confiança em Meguid Mahmodu é clamorosa. Na sua gestão não houve condenações pelas mortes de 800 pessoas na revolução de 2011 ou pelas dezenas de assassinatos pós-revolucionários, todos cometidos pela polícia dos tempos de ditadura aberta.

Por essas e outras, o fato de Morsi ter impedido os tribunais militares de julgar civis também soa positivo. Mais de 15 mil egípcios foram condenados pelos tribunais militares à prisão entre o curto período de fevereiro de 2011 e junho de 2012. A vasta maioria dos condenados era, é claro, formada por opositores ao regime de Mubarak.

Por outro lado, não é saudável a tentativa de Morsi de reduzir os poderes do Judiciário, ainda que várias de suas cortes sigam ocupadas por antigos magistrados dos tempos de Mubarak. Fundamental, dizem os especialistas, é reformar o Judiciário. Mas o temor é que Morsi nomeie magistrados subservientes à Irmandade Muçulmana em substituição aos asseclas do ditador anterior.

A luta do presidente islamita contra o Judiciário é também um ato de retaliação. Algumas altas cortes ainda controlam o Senado, cujos integrantes foram eleitos pelo voto popular. Esses mesmos magistrados dissolveram a Assembleia Constituinte na primavera (do Hemisfério Norte), escolhida pelo Parlamento para redigir a nova Constituição até dezembro. No entanto, a Assembleia Constituinte era malvista pelos seculares por ser dominada por integrantes da liga religiosa.

De sua parte, a Assembleia-Geral, igualmente eleita e com maioria oriunda da Irmandade Muçulmana (e por isso integrantes de outras legendas a deixaram), também foi dissolvida pelos magistrados. O entrevero com o Judiciário aconteceu escassos meses após os momentos de glória de Morsi. Para surpresa geral, o presidente egípcio se desfez de poderosos generais nomeados, como os juízes, por Mubarak. Generais responsáveis pela transição democrática responsável pela eleição de Morsi. “Essas demissões”, observa Harmsen, “pareciam representar uma saudável transição de uma ditadura para a democracia.”

Morsi anulou os poderes do Conselho Supremo das Forças Armadas (Scaf) em agosto, ninguém nega, e dessa forma, transferiu a autoridade executiva e legislativa dos militares para a Presidência. Detalhe: os militares controlaram o país durante 18 meses antes da eleição de Morsi, e no meio-tempo anunciaram, por meio de uma declaração constitucional, que o Scaf tinha poderes para legislar e administrar, inclusive o poder de veto a qualquer artigo durante a redação da Constituição.

Perto de 70% dos generais foram forçados a se aposentar. Entre eles, o ministro da Defesa, Hussein Tantawi, o homem forte do Egito até então. Logo veio à tona o fato de os poderosos generais terem deixado seus cargos sob a condição de Morsi não se exceder em assuntos de soberania, como a segurança interna, inteligência, defesa e política externa. A opinião pública de fato percebe Morsi mais cauteloso ao criticar a polícia, ainda bastante apegada a velhos métodos de tortura e corrupção. Sabe-se, ainda, que o Ministério do Interior continua envolvido na morte de civis.

Mas o que diriam os militares do decreto de Morsi, agora com poderes ditatoriais? Na verdade, Morsi ataca a instituição militar por se entender com numerosos oficiais, quase todos outrora frustrados com a longevidade de seus superiores, caso do próprio Tantawi. Segundo a especialista em política egípcia Virginie Colombier, “os militares promovidos sob Morsi não são revolucionários ou desconhecidos”. Em entrevista para o Mediapart.fr, Colombier diz que a Irmandade Muçulmana e o Exército egípcio trabalham juntos. Recentemente, por exemplo, Morsi pediu uma CPI da corrupção nas Forças Armadas. “Se o Exército não estiver de acordo, a CPI não poderá jamais investigar a fundo os interesses econômicos dos militares, que são enormes.”

Compromissos à parte, Morsi teve outros momentos de glória. Sua moderação no cessar-fogo durante a guerra de oito dias entre o Hamas e Israel parece ter sido decisiva. A trégua foi assinada em 21 de novembro, um tipo de mediação que Mubarak fazia com maestria, para a ira do mundo árabe, com ecos do acordo de paz entre o Egito e Israel de 1979, que Morsi agora põe em prática com habilidade. O diário norte-americano The New York Times fala em uma nova e até há pouco tempo impensável parceria geopolítica. Quem poderia imaginar o presidente do Egito e líder da Irmandade Muçulmana metido em uma relação tão profícua com Barack Obama?

O NYT admite, até aí nada de surpreendente, que Obama tinha problemas com o fato de o Egito ser liderado pela Irmandade Muçulmana. Obama, contudo, ainda segundo o NYT, ficou “impressionado” com o pragmatismo e com o fato de Morsi ser pouco apegado a ideologias. Diz Obama no NYT: “Este era um homem focado em resolver problemas”. Interessante, como assinalou um observador norte-americano, a sintonia entre o mais importante aliado internacional do Hamas, Morsi, e aquele a representar Israel, Obama.

Mas surge a questão: seria uma relação efêmera ou de longa duração? Talvez venha a ser duradoura. Em setembro, quando radicais egípcios invadiram a embaixada dos Estados Unidos em protesto contra um filme anti-Islã, Obama reclamou por Morsi não ter condenado o ataque. Morsi, contudo, aumentou a segurança da embaixada norte-americana, disse que os agressores não representavam o Egito. Ao que parece, Obama ficou satisfeito com a intervenção.

Joseph Lewiz (como prefere ser identificado), professor de inglês no Cairo, vê a parceria entre Washington e o Cairo com o devido cinismo. “Os Estados Unidos não estão preocupados com o fato de termos tido um golpe de Estado aqui. Eles só querem saber se seus interesses serão atendidos”, opina. “Dizem que estão tentando entender o que o povo deseja, mas é uma grande hipocrisia. Os EUA fazem o que Morsi quiser se o ditador resolver os problemas geopolíticos deles.”

Harmsen, o professor, concorda. Os Estados Unidos distinguem entre problemas de política exterior, que os afetam, e a distante política interna. “Como vimos no conflito entre Gaza e Israel, Morsi foi útil. Ele é útil para os EUA, assim como foi o ditador Mubarak.”

Para os norte-americanos, não importa claramente que a economia egípcia esteja à beira do abismo. Que os apagões tenham virado rotina, assim como os cortes de água, as filas para comprar pão. Morsi falava em dar maior poder de compra aos egípcios. Segundo Harmsen, o Egito precisa do caixa dos Estados Unidos (cerca de 1,5 bilhão de euros anuais), e vai seguir a sua política externa. “A Irmandade Muçulmana, como Mubarak, seguirá a política econômica neoliberal dos EUA, mesmo se ela não funciona e aumenta os níveis de pobreza”, prevê o especialista.

Na mesma linha, Christine Lagarde, do Fundo Monetário Internacional (FMI), votará um empréstimo de 4,8 bilhões de dólares para o Egito. Isso sem levar em consideração a atual crise política. Com qual finalidade? No mundo neoliberal dos EUA e do FMI, o que conta é ter aliados no mapa geopolítico, mesmo ditadores. Os mais confiáveis são os que levam altas somas para seguir seus programas políticos reacionários e neoliberais. Nessa perspectiva, Morsi é o islamita caído dos céus.

Namees Arnous está furiosa. Ela fala em uma nova revolução no Egito, após a que derrubou o ditador Hosni Mubarak, em janeiro de 2011. Desta vez, o objetivo dos manifestantes da simbólica Praça Tahrir (e país afora) é derrubar Mohamed Morsi, o presidente que em 22 de novembro promulgou um decreto pelo qual confere a si direitos plenos. “Depusemos um ditador laico, e colocamos no posto um déspota islamita da Irmandade Muçulmana”, resume Arnous, diretora-executiva da Bokranews.com, estação de rádio e notícias online.

 

 

O quadro político do país mais populoso do mundo árabe é mais uma vez crítico. Mohamed el-Baradei, o ex-presidente da Agência Internacional de Energia Atômica, Nobel da Paz e coordenador da Frente de Salvação Nacional (formada pelos partidos contrários ao decreto de Morsi, que por ironia do destino foi capaz de unir as esquerdas), não descarta uma guerra civil. El-Baradei parece ter razão. Proliferam manifestações e atos de violência contra o líder egípcio eleito em junho, o quinto mandatário do país e o primeiro islamita.

Na terça-feira 27, 100 mil pessoas tomaram as ruas da capital, Cairo, para protestar contra os poderes expandidos de Morsi, um engenheiro de 61 anos. Um dos alvos prediletos dos manifestantes são as representações da Irmandade Muçulmana e de sua artéria política, o Partido Liberdade e Justiça. Na capital, as Forças Armadas puderam defender a sede da legenda islamita. Em cidades como Alexandria, os escritórios do grupo religioso foram, porém, saqueados. Outra sede da agremiação islamita foi incendiada. Centenas de pessoas foram feridas nos confrontos com a polícia, e na última semana houve quatro mortes. Uma das vítimas, Fathi Gharib, da Aliança Popular Socialista, faleceu ao inalar gás lacrimogêneo lançado pelas forças de repressão.

Os protestos continuam. Na sexta-feira 30, está programado um protesto gigante: cerca de 1 milhão de manifestações contra o “golpe islamita” varreriam o Egito, prometiam os organizadores alguns dias antes de saírem às ruas. No sábado, aliados, salafitas e integrantes da Irmandade Muçulmana planejavam ir a público para defender Morsi. O objetivo de organizar os protestos em dias diferentes era, obviamente, o de evitar um confronto com potencial para terminar de maneira trágica. Pode sair daí o estopim da tal guerra civil temida por El-Baradei.

Em um país dividido entre liberais aliados a seculares e islamitas, a questão é saber até quando durará o impasse. “É difícil fazer previsões”, diz em entrevista por telefone Egbert Harmsen, especialista em Oriente Médio da Universidade de Leiden, na Holanda. No momento, prossegue o acadêmico, Morsi diz ter optado por uma ditadura para salvar a revolução de janeiro do ano passado. “Quando soubermos se ele vai ou não manter a sua atual posição de imunidade legal, as mudanças ocorrerão com mais rapidez”, avalia. Em suma, brevemente os conflitos arrefecerão ou intensificarão.

Mesmo integrantes da Irmandade Muçulmana se inquietaram com os superpoderes. Em um discurso calculadamente conciliatório, o presidente tentou acalmar os ânimos. Disse estar “orgulhoso” de presidir um país com uma oposição vocal. No entanto, o decreto teria sido o único meio de garantir os objetivos da revolução de 2011 e completar a transição democrática. Igualmente importante, avalia Morsi, é realizar as corretas medidas econômicas. Erradicar a corrupção foi outro assunto abordado pelo presidente. “Eu nunca infringirei os direitos pelos quais passei minha vida lutando”, reforçou.

Harmsen lembra que as ditaduras sempre se iniciam com a suposta necessidade de medidas de emergência. Foi o caso do Chile, quando Augusto Pinochet deu seu golpe, mas também na Alemanha, quando Adolph Hitler ampliou seu poder. Alerta Harmsen: “Veja, não estou a comparar Morsi e Pinochet com Hitler, mas o princípio que o levou a se transformar em ditador por decreto são os mesmos dos déspotas do Chile e da Alemanha”.

Saltam aos olhos três artigos do decreto de Morsi. No segundo item, lê-se: “Todas as proclamações constitucionais do presidente egípcio desde a sua entrada na função são definitivas”. O quinto artigo estipula que “nenhuma corte de Justiça poderá suspender a Assembleia (Câmara dos Deputados) e o Senado”. O sexto artigo refere-se à defesa da revolução de 2011, à segurança nacional e ao bom funcionamento das instituições do Estado. Nesses casos, “o presidente da República estará autorizado a tomar todas as medidas necessárias”.

O decreto, cinicamente aclamado por Morsi como uma declaração constitucional, é visto pelos magistrados como um ataque contra o Judiciário. E eles têm razão. Pierre Puchot, do website Mediapart.fr, argumenta, porém, que a demissão do procurador-geral Abdel Meguid Mahmodu por Talaat Ibrahim, integrante do movimento pela independência dos juízes de 2005 e por isso enviado ao Kuwait pelo ex-ditador Mubarak, revela a credibilidade de Ibrahim. Por outro lado, a falta de confiança em Meguid Mahmodu é clamorosa. Na sua gestão não houve condenações pelas mortes de 800 pessoas na revolução de 2011 ou pelas dezenas de assassinatos pós-revolucionários, todos cometidos pela polícia dos tempos de ditadura aberta.

Por essas e outras, o fato de Morsi ter impedido os tribunais militares de julgar civis também soa positivo. Mais de 15 mil egípcios foram condenados pelos tribunais militares à prisão entre o curto período de fevereiro de 2011 e junho de 2012. A vasta maioria dos condenados era, é claro, formada por opositores ao regime de Mubarak.

Por outro lado, não é saudável a tentativa de Morsi de reduzir os poderes do Judiciário, ainda que várias de suas cortes sigam ocupadas por antigos magistrados dos tempos de Mubarak. Fundamental, dizem os especialistas, é reformar o Judiciário. Mas o temor é que Morsi nomeie magistrados subservientes à Irmandade Muçulmana em substituição aos asseclas do ditador anterior.

A luta do presidente islamita contra o Judiciário é também um ato de retaliação. Algumas altas cortes ainda controlam o Senado, cujos integrantes foram eleitos pelo voto popular. Esses mesmos magistrados dissolveram a Assembleia Constituinte na primavera (do Hemisfério Norte), escolhida pelo Parlamento para redigir a nova Constituição até dezembro. No entanto, a Assembleia Constituinte era malvista pelos seculares por ser dominada por integrantes da liga religiosa.

De sua parte, a Assembleia-Geral, igualmente eleita e com maioria oriunda da Irmandade Muçulmana (e por isso integrantes de outras legendas a deixaram), também foi dissolvida pelos magistrados. O entrevero com o Judiciário aconteceu escassos meses após os momentos de glória de Morsi. Para surpresa geral, o presidente egípcio se desfez de poderosos generais nomeados, como os juízes, por Mubarak. Generais responsáveis pela transição democrática responsável pela eleição de Morsi. “Essas demissões”, observa Harmsen, “pareciam representar uma saudável transição de uma ditadura para a democracia.”

Morsi anulou os poderes do Conselho Supremo das Forças Armadas (Scaf) em agosto, ninguém nega, e dessa forma, transferiu a autoridade executiva e legislativa dos militares para a Presidência. Detalhe: os militares controlaram o país durante 18 meses antes da eleição de Morsi, e no meio-tempo anunciaram, por meio de uma declaração constitucional, que o Scaf tinha poderes para legislar e administrar, inclusive o poder de veto a qualquer artigo durante a redação da Constituição.

Perto de 70% dos generais foram forçados a se aposentar. Entre eles, o ministro da Defesa, Hussein Tantawi, o homem forte do Egito até então. Logo veio à tona o fato de os poderosos generais terem deixado seus cargos sob a condição de Morsi não se exceder em assuntos de soberania, como a segurança interna, inteligência, defesa e política externa. A opinião pública de fato percebe Morsi mais cauteloso ao criticar a polícia, ainda bastante apegada a velhos métodos de tortura e corrupção. Sabe-se, ainda, que o Ministério do Interior continua envolvido na morte de civis.

Mas o que diriam os militares do decreto de Morsi, agora com poderes ditatoriais? Na verdade, Morsi ataca a instituição militar por se entender com numerosos oficiais, quase todos outrora frustrados com a longevidade de seus superiores, caso do próprio Tantawi. Segundo a especialista em política egípcia Virginie Colombier, “os militares promovidos sob Morsi não são revolucionários ou desconhecidos”. Em entrevista para o Mediapart.fr, Colombier diz que a Irmandade Muçulmana e o Exército egípcio trabalham juntos. Recentemente, por exemplo, Morsi pediu uma CPI da corrupção nas Forças Armadas. “Se o Exército não estiver de acordo, a CPI não poderá jamais investigar a fundo os interesses econômicos dos militares, que são enormes.”

Compromissos à parte, Morsi teve outros momentos de glória. Sua moderação no cessar-fogo durante a guerra de oito dias entre o Hamas e Israel parece ter sido decisiva. A trégua foi assinada em 21 de novembro, um tipo de mediação que Mubarak fazia com maestria, para a ira do mundo árabe, com ecos do acordo de paz entre o Egito e Israel de 1979, que Morsi agora põe em prática com habilidade. O diário norte-americano The New York Times fala em uma nova e até há pouco tempo impensável parceria geopolítica. Quem poderia imaginar o presidente do Egito e líder da Irmandade Muçulmana metido em uma relação tão profícua com Barack Obama?

O NYT admite, até aí nada de surpreendente, que Obama tinha problemas com o fato de o Egito ser liderado pela Irmandade Muçulmana. Obama, contudo, ainda segundo o NYT, ficou “impressionado” com o pragmatismo e com o fato de Morsi ser pouco apegado a ideologias. Diz Obama no NYT: “Este era um homem focado em resolver problemas”. Interessante, como assinalou um observador norte-americano, a sintonia entre o mais importante aliado internacional do Hamas, Morsi, e aquele a representar Israel, Obama.

Mas surge a questão: seria uma relação efêmera ou de longa duração? Talvez venha a ser duradoura. Em setembro, quando radicais egípcios invadiram a embaixada dos Estados Unidos em protesto contra um filme anti-Islã, Obama reclamou por Morsi não ter condenado o ataque. Morsi, contudo, aumentou a segurança da embaixada norte-americana, disse que os agressores não representavam o Egito. Ao que parece, Obama ficou satisfeito com a intervenção.

Joseph Lewiz (como prefere ser identificado), professor de inglês no Cairo, vê a parceria entre Washington e o Cairo com o devido cinismo. “Os Estados Unidos não estão preocupados com o fato de termos tido um golpe de Estado aqui. Eles só querem saber se seus interesses serão atendidos”, opina. “Dizem que estão tentando entender o que o povo deseja, mas é uma grande hipocrisia. Os EUA fazem o que Morsi quiser se o ditador resolver os problemas geopolíticos deles.”

Harmsen, o professor, concorda. Os Estados Unidos distinguem entre problemas de política exterior, que os afetam, e a distante política interna. “Como vimos no conflito entre Gaza e Israel, Morsi foi útil. Ele é útil para os EUA, assim como foi o ditador Mubarak.”

Para os norte-americanos, não importa claramente que a economia egípcia esteja à beira do abismo. Que os apagões tenham virado rotina, assim como os cortes de água, as filas para comprar pão. Morsi falava em dar maior poder de compra aos egípcios. Segundo Harmsen, o Egito precisa do caixa dos Estados Unidos (cerca de 1,5 bilhão de euros anuais), e vai seguir a sua política externa. “A Irmandade Muçulmana, como Mubarak, seguirá a política econômica neoliberal dos EUA, mesmo se ela não funciona e aumenta os níveis de pobreza”, prevê o especialista.

Na mesma linha, Christine Lagarde, do Fundo Monetário Internacional (FMI), votará um empréstimo de 4,8 bilhões de dólares para o Egito. Isso sem levar em consideração a atual crise política. Com qual finalidade? No mundo neoliberal dos EUA e do FMI, o que conta é ter aliados no mapa geopolítico, mesmo ditadores. Os mais confiáveis são os que levam altas somas para seguir seus programas políticos reacionários e neoliberais. Nessa perspectiva, Morsi é o islamita caído dos céus.

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