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Sob escombros

Das escolas ao sistema de saúde, uma década e meia de austeridade destroçaram o Reino Unido

Engenharia nota zero. O premier Sunak lida agora com o risco de desabamento de escolas públicas – Imagem: Ben Stevens/Partido Conservador e Redes sociais
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Vai para lá de um ano o curto e desastroso governo da primeira-ministra Liz Truss. Mas quando Rishi Sunak entrou recentemente na Câmara dos Comuns, a política em Westminster parecia tão desligada­ da realidade quanto no caótico mandato de 50 dias de Truss. Os deputados e ministros conservadores saudaram o primeiro-ministro Sunak após as longas férias de verão com os rugidos habituais, enquanto ele se sentava para responder a perguntas. Quanto mais dificuldade seu líder enfrenta hoje em dia, mais barulho eles parecem fazer.

O motivo pelo qual estavam com as vozes tão boas deve ter sido um mistério para qualquer observador objetivo. Na semana em que os estudantes regressaram às aulas para o novo ano letivo, o governo acabava de publicar uma vergonhosa lista de 147 escolas públicas da Inglaterra cujos edifícios correm o risco de desmoronar (tendo previamente se recusado a nomear as afetadas). Muitas escolas ficam em distritos eleitorais conservadores. Salas de aula e de reuniões, refeitórios e corredores foram isolados antes do início do período letivo, e as crianças que regressavam foram desviadas para “espaços seguros” temporários, onde quer que pudessem ser encontrados.

George Osborne, o antigo chanceler do Tesouro conservador e arquiteto da austeridade, costumava acusar seus antecessores trabalhistas de “não terem consertado o telhado enquanto o sol brilhava”. Mas depois de 13 anos da redução de ­custos iniciada por ele, grande parte do patrimônio escolar corre o risco de entrar em colapso total. Antigos funcionários públicos disseram que a culpa era dos políticos que queriam economizar, em vez de pagar pelas reformas. No que se refere a desastres políticos, este foi um dos piores.

Outras notícias aumentaram a impressão de mal-estar nacional. Horas antes de a lista de escolas em ruínas ser divulgada, o suspeito de terrorismo Daniel Khalife tinha escapado da prisão de ­Wandsworth embaixo de uma caminhonete de entregas. A culpa foi da falta de pessoal e dos cortes nos orçamentos das prisões. Foram feitas perguntas sobre a razão pela qual Khalife estava num presídio de categoria B, dados os crimes dos quais ele é suspeito. Foi a redução de custos, a falta de pessoal ou uma falha no sistema que permitiu essa versão moderna de uma “grande fuga”?

Depois, como se a agenda de más notícias não estivesse suficientemente cheia, a Câmara Municipal de Birmingham, uma das maiores autoridades locais do Reino Unido, anunciou que tinha efetivamente declarado falência. Especialistas amontoaram-se para alertar que muitas outras prefeituras em toda a Inglaterra estão vivendo “precariamente” após 13 anos de cortes de custos. O país estaria desmoronando?

Na Câmara dos Comuns, Sunak, tal como seus apoiadores, desistiu de tentar apresentar argumentos coerentes. As tentativas de “redefinição” das políticas durante o verão em termos de saúde, imigração e escolas fracassaram. Tudo o que ele e eles podiam fazer era gritar mais alto, negar, afastar-se da realidade e fingir que tudo está bem. “Os conservadores estão empenhados em ajudar a Grã-Bretanha”, gritou o primeiro-ministro. Antes de se sentar, ele atraiu mais aplausos ao acusar Keir Starmer de oportunismo político por ter tido a coragem de levantar a segurança das escolas como um problema, em primeiro lugar.

Quando a temporada de conferências dos partidos políticos começar, no fim deste mês, Sunak espera que as previsões de queda da inflação e de uma perspectiva econômica mais estável de alguma forma deem início a um renascimento conservador em tempo para a eleição geral dentro de um ano ou mais. Mas, apesar de suas demonstrações de bravura na Câmara dos Comuns, poucos ­deputados conservadores veem realmente muita esperança. As classificações do seu partido nas pesquisas não diminuí­ram acentuadamente durante o verão, mas também não mostraram qualquer sinal de melhora, apesar das incansáveis iniciativas destinadas a mudar o rumo.

Ao retornarem à Câmara dos Comuns, os parlamentares conservadores estavam, em particular, sombrios. “Seis meses atrás, se você tivesse perguntado, eu teria dito que estávamos no jogo”, disse um deles num assento lateral na “parede vermelha”. “Agora acho que passou. Acho que o eleitorado como um todo se decidiu. Não temos nada a dizer no degrau da porta.”

Essa “questão do degrau da porta” é levantada por muitos conservadores preocupados. O que poderão dizer depois de quase uma década e meia? Onde está a história que pode dar sentido a seus três mandatos? Em 2010, quando David ­Cameron e Osborne, com a ajuda dos liberais-democratas de Nick Clegg, inauguraram a austeridade, apresentaram-na como um curto período de sofrimento necessário imposto ao país para corrigir as finanças públicas.

Os conservadores negam a realidade, mas os eleitores parecem ter entendido o desastre

Em vez disso, hoje, as imagens e experiências são de serviços com poucos recursos e de um declínio geral resultante da falta crônica e sistemática de investimento. Durante o primeiro mandato do governo conservador, a austeridade andou muitas vezes acompanhada de argumentos ideológicos sobre a criação de um Estado menor. Mas também aqui, enquanto os deputados conservadores procuram notícias positivas, há, em vez disso, provas de má gestão na busca dessas visões ideológicas. Como revelamos, alguns dos problemas que agora vêm à luz nos edifícios escolares estão nas “escolas gratuitas” de Michael Gove, quando os edifícios foram aprovados sem as verificações adequadas, para aumentar o número daquelas que operam sem o controle das autoridades locais.

The Observer descobriu provas de que o governo estava com tanta pressa para abrir novas escolas gratuitas na Inglaterra que comprou edifícios antigos, muitos deles construídos logo após a Segunda Guerra Mundial, utilizando concreto aerado e amianto. Uma escola gratuita na nova lista do governo de 147 unidades feitas com Raac (concreto aerado autoclavado reforçado) é a Northampton ­International Academy. Quando foi inaugurada, em 2017, os alunos tiveram de estudar em salas temporárias numa área conhecida pelo tráfico de drogas, enquanto o antigo escritório de triagem do Correio Real era reformado para acomodá-los. O projeto custou 40 milhões de libras, 25% acima do orçamento, o que foi atribuído a “pesquisas insuficientes” antes da aprovação inicial do local. Agora, o governo ordenou que a escola fechasse parte do local por temer que o telhado não seja seguro.

Em 2014, um centro de treinamento de controle de tráfego aéreo próximo ao aeroporto de Bournemouth foi comprado para abrigar outra escola gratuita, ­Parkfield, após um relatório de quatro páginas do vendedor. Mais tarde, amianto e morcegos foram encontrados no local e bombas não detonadas ainda não foram descartadas. Metade dos edifícios na região foi demolida por eles serem inadequados, e a mídia local estima o custo em 35 milhões de libras.

Normalmente, o Departamento de Educação protege todas as informações sobre pesquisas pré-compra, com base na sensibilidade comercial. Mas The ­Observer tem provas de 13 escolas gratuitas onde apenas inquéritos rápidos, em alguns casos recomendando mais testes de um possível Raac, foram realizados antes de os locais serem adquiridos. A agência governamental de financiamento da educação e competências (Esfa) revelou, sob um pedido de liberdade de informação, que muitas vezes “não é prático fazer um inquérito intrusivo” antes de comprar um edifício para uma escola gratuita. O consultor de financiamento Tim ­Warneford diz: “Isto, simplesmente, é lixo”.

Após o desmonte do programa trabalhista Construindo Escolas para o Futuro, por parte de Michael Gove, em 2010, Warneford diz que há amplas evidências de que o governo pagou “bem acima das probabilidades” por edifícios degradados para abrigar suas novas escolas gratuitas, e ele está ainda mais irritado com o fato de a ausência de pesquisas completas ter levado, em alguns casos, a milhões de libras em despesas extras.

Terra arrasada. A pobreza aumenta, enquanto o desmonte do Estado ameaça o sistema de saúde, orgulho nacional – Imagem: iStockphoto e Steve Eason/CPGB

Outra dificuldade para os conservadores no degrau da porta é o que dizer sobre “subir de nível”, a visão pós-austeridade para um país mais igualitário. Após as eleições de 2019, quando os conservadores conquistaram dezenas de assentos dos trabalhistas no norte da Inglaterra e na região de Midlands, Boris ­Johnson prometeu fazer o país “subir de nível”, a fim de retribuir a fé dos novos eleitores conservadores. Após a pandemia, ele reformulou a mensagem e falou em “reconstruir melhor”. Grandes partes do norte e de Midlands não viram, porém, exatamente nada no sentido de subir de nível. A Câmara Municipal de Birmingham não é a única à beira da falência, nem todas as autoridades que enfrentam dificuldades semelhantes são lideradas pelos trabalhistas. Desde 2010, o financiamento em termos reais por parte do governo central caiu mais de 40%.

O diretor-financeiro do Conselho de Bradford, Christopher Kinsella, apresentou recentemente um relatório sobre as finanças do primeiro trimestre do órgão, no qual pintou um quadro terrível para ele e para muitos outros da região. “Muitos conselhos estão sofrendo pressões semelhantes em todo o país em consequência dessas questões sistêmicas de financiamento, e vários conselhos estão se aproximando dos avisos da Seção 114, o que significa que não são permitidas novas despesas. Isto não tem precedentes e reflete um setor que necessita urgentemente de apoio.”

A falta crônica e sistemática de investimentos levou ao declínio dos serviços públicos

As pressões são agudas em toda a região. Quatro escolas em Bradford são afetadas pela crise do Raac, e o estado dos transportes públicos é uma fonte constante de irritação. Em março deste ano, a operadora ferroviária Northern fez uma série de cortes nos serviços. Há pouco menos de dois anos, o governo descartou os planos de uma esperada ligação ferroviária de alta velocidade entre Leeds e Manchester.

Na Prisão Armley, em Leeds, um enorme edifício de tijolos vermelhos inaugurado em 1847, um relatório do Inspetor de Presídios de Sua Majestade de julho deste ano dizia: “A HMP Leeds continua uma prisão vitoriana superlotada no centro da cidade, com pouco menos de 1.110 prisioneiros adultos. Na última inspeção, em 2022, encontramos uma prisão que precisava ser mais segura e proporcionar atividades mais significativas aos reclusos. Em particular, estávamos preocupados com o elevado número de prisioneiros que tiraram a própria vida”.

Quer se trate da austeridade, do retrocesso do Estado ou, mais recentemente, das promessas de nivelar o país, tem ficado cada vez mais difícil ver onde os conservadores podem afirmar que realmente conseguiram. Em Kirklees, Scott colocou dessa forma: “Subir de nível não é apenas um slogan sem sentido. Tornou-se uma piada cruel à nossa custa”. •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves . 

Publicado na edição n° 1278 de CartaCapital, em 27 de setembro de 2023.

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