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Situação dos povos indígenas no Brasil é ‘particularmente grave’, diz relator da ONU

Pedro Arrojo-Agudo é autor de relatório que cita problemas vividos por indígenas brasileiros no acesso aos direitos humanos

Documento abordou cenário social para os indígenas no Brasil. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
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O relator da ONU para a água e o saneamento, o espanhol Pedro Arrojo-Agudo, vê com preocupação o que chama de “corte racista” que o governo do presidente Jair Bolsonaro (PL) tem em relação aos indígenas. Para ele, que conversou com CartaCapital desde Genebra, na Suíça, a gestão federal busca “transformar em legal o que é ilegal e ilegítimo”.

Arrojo Agudo é o autor do relatório Direitos humanos à água potável e ao saneamento de povos indígenas: situação e lições de culturas ancestrais, apresentado à Assembleia Geral das Nações Unidas na semana passada. O informe, de 20 páginas, cita o Brasil cinco vezes ao tratar dos problemas enfrentados pelos povos originários no mundo.

A primeira delas ocorre logo na página 9, quando o espanhol trata do tema “Acessibilidade”. O trecho explica que, globalmente, os indígenas representam 18,7% da população em extrema pobreza, e 33% deles estão em áreas rurais. Nessas condições, muitas vezes não conseguem pagar pela água e pelo saneamento, nem fazer o investimento para garantir tais serviços. O relator cita exemplos de governos que oferecem poços para indígenas, mas lembra a situação brasileira ao dizer que “há falta de financiamento para fornecer treinamento para operar a tecnologia adequadamente”.

Em seguida, o documento aponta que as terras que são alvo de grilagem muitas vezes fazem parte de territórios indígenas. “Em 2022, uma iniciativa legal no Brasil que tentou permitir o uso de recursos hídricos em territórios indígenas para a mineração e a energia hidrelétrica levantou alarmes em todo o mundo”.

A terceira citação aborda o tema poluição. “No Brasil, as atividades de mineração ilegal e a poluição associada ao mercúrio e desmatamento ameaçaram o acesso à água potável para os indígenas Munduruku na bacia do rio Tapajós”, diz trecho do texto. Já a quarta se dá ao lembrar que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos precisou exigir do Brasil “medidas específicas de proteção ao povo Yanomami”.

A última menção afirma que “no Brasil, cerca de um quarto das crianças indígenas correm maior risco de serem acometidas pela diarreia devido à indisponibilidade de água potável e instalações sanitárias adequadas”.

Arrojo Agudo, que é economista e ambientalista, sucedeu o brasileiro Leo Heller no cargo e continuou com estudos sobre a privatização do acesso à água e o consumo desse bem por setores sociais vulneráveis.

Nesta terça-feira 20, será a última vez em que Bolsonaro abre os discursos de alto nível na Assembleia da ONU em seu primeiro mandato. O chefe do Executivo brasileiro, que disputa a sua reeleição, permanece sob a vigilância internacional por suas medidas ambientais observadas de forma crítica por especialistas e entidades do ramo.

Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista.

Pedro Arrojo-Agudo, relator da ONU para o direito à água e ao saneamento. Foto: The Food and Agriculture Organization

CartaCapital: Como o processo de privatização da água tem avançado?

Pedro Arrojo Agudo: Em cada ano, os relatores têm que fazer dois informes temáticos. O ano passado foi o primeiro em que exerci como relator e fiz dois informes temáticos. O segundo deles, o que apresentei e defendi na Assembleia Geral das Nações Unidas, era justamente dedicado à mercantilização e a financeirização da água. Meu antecessor, o professor brasileiro Leo Heller, fez seu último informe sobre os processos de privatização dos serviços de saneamento. Quer dizer, são três níveis que têm sido tratados.

O que ficou expresso diante das Nações Unidas é que a privatização da gestão dos serviços tem pressionado para abrir caminhos no Brasil e em grande parte da América Latina. Há tido, também, uma marcha para trás em muitos países. Já a mercantilização, ou seja, a consideração da água como um produto e a permissão da compra e venda de direitos à água, já havia sido introduzida no Chile, nos Estados Unidos, na Espanha e na Austrália, distintos países onde o estado dá uma concessão de água para determinado uso e se estabelecem leis nas quais esses direitos podem ser vendidos. Por último, a financeirização é o que se está passando quando não só se vende a água, como se especula com o seu possível valor nas bolsas e mercados de futuro. É o que tem se passado na Califórnia.

CC: Qual a posição do senhor em relação a esse processo?

PAA: São três questões diferentes, mas com uma vinculação estreita. Nos três casos, a base desde a qual se promovem essas estratégias de negócio é considerar a água fundamentalmente como um bem econômico e como um bem produtivo, ignorando ou deixando em segundo plano as funções de interesse geral para a sociedade.

Léo Heller havia concluído que a privatização dos serviços não é a melhor forma de gerenciar questões que o mercado não entende e não tem como entender. Os direitos humanos não se compram nem se vendem. Devem ser gerenciados em uma ordem superior a qualquer questão que o mercado gerencia. Devem, também, ser acessíveis para aquele que não pode pagar. Se gerenciarmos a água através de dinâmicas de mercado, transformamos as pessoas em clientes, e os dois bilhões de pessoas mais empobrecidas passarão a ser mais vulneráveis.

Ainda que haja formas justificadas por fórmulas de privatização reguladas de maneira estrita e que evitem certos abusos, creio que a água como bem comum deva ser gerenciada por meio de modelos de gestão altamente participativos, transparentes, como um serviço público, por instituições públicas. Não basta dizer isso, porque pode haver uma gestão pública corrupta, burocrática e ruim, certo? Mas creio que deva ser uma governança democrática.

O presidente da República, Jair Bolsonaro (PL). Foto: Carolina Antunes/PR

CC: Qual o estágio do acesso da população indígena à água depois da pandemia?

PAA: Praticamente não há dados específicos sobre água e saneamento entre os povos indígenas. Há muito poucos. É justamente uma das demandas das minhas conclusões.

Com os testemunhos que venho recolhendo, diria que, a princípio, os povos indígenas se defenderam bem da pandemia, na medida em que muitas comunidades estão mais isoladas e têm uma relação mais limitada com as cidades. Porém, uma vez que a infecção entra, esses povos não dispõem de apoio médico adequado. O impacto foi muito grave, e está se produzindo uma piora em relação à água e ao saneamento entre os povos indígenas, não tanto pela pandemia, mas pela instalação de grandes infraestruturas e projetos de apropriação de terras.

Isso leva a um prejuízo à sustentabilidade em ecossistemas aquáticos que esses povos em geram vinham conservando de maneira rigorosa. Pelo menos os seus entornos estavam bem preservados por suas práticas de conservação. Esses impactos não apenas consomem os terrenos, mas também consomem a água e devolvem contaminantes às águas dos indígenas.

CC: O senhor fez referências ao Brasil no seu informe. Como a situação brasileira tem chegado ao exterior?

PAA: Como relator, quando reúno informações de qualquer país que impliquem na transgressão de direitos humanos, neste caso, em relação à água e ao saneamento, tenho a obrigação de dirigir a crítica diretamente ao governo em carta direta e e esperar dois meses, diplomaticamente, para que haja resposta. A partir daí, o relator tem uma posição pública sobre esses temas. Permita-me, aí, ter uma posição de prudência.

Mas, bem, certamente, quando faço os meus informes, e agora vou apresentar também o de comunidades rurais empobrecidas, aparecem citações a problemas concretos que se dão no Brasil. Aparecem, por exemplo, não só a apropriação de terras, que em muitos casos corresponde às terras indígenas, como também que por parte do governo se produz um agravante, que é a justificação e a pretendida legalização do que é uma ilegalidade. É contrariar obrigações internacionais assumidas pelo país, em compromissos vinculados aos direitos humanos.

É uma transgressão que deve ser denunciada. Não pode ser combatida em muitos casos por governos, infelizmente, porque muitos assumem uma posição cúmplice e permissiva ante dinâmicas desse tipo, ou dão autorizações às invasões de terras indígenas sem a correspondente consulta prévia.

Quando no Brasil se produz uma ação, uma operação consciente e justificada, com propostas de reforma para transformar em legal o que é ilegal e ilegítimo, obviamente me vejo obrigado a criticar. Mesmo que não seja o único país em que isso ocorre, está ocorrendo no Brasil de maneira particularmente grave, com justificativas a partir de mensagens de corte claramente racista do governo. Isso não é aceitável.

É uma questão que estou estudando e que será motivo, possivelmente, de alguma carta ao governo brasileiro para seguir um procedimento mais rigoroso, que leve a discutir com o próprio governo os seus pretendidos argumentos e a fazer a correspondente denúncia internacional.

A nível global, a mobilização indígena está em uma fase de progresso. Nas últimas duas décadas, têm sido capazes de passar da dispersão geral, sem nenhum tipo de direito reconhecido em âmbito internacional, ao trabalho de maneira persistente e coordenada, evitando confrontações, com uma unidade muito grande nos próprios sistemas das Nações Unidas. Sem dúvidas, têm que dar passos mais avançados, capazes de gerar protocolos que permitam o cumprimento efetivo desses direitos já acordados.

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