Mundo
Ser ou não quintal
Daniel Noboa curva-se a Washington, enquanto Luisa González defende a identidade local no acirrado segundo turno


Daniel Noboa não se conteve. Quinze dias antes do segundo turno das eleições presidenciais de 13 de abril, o herdeiro da maior fortuna do Equador e candidato à reeleição publicou nas redes sociais o que aparenta ser seu trunfo decisivo: uma foto com Donald Trump, no salão Oval da Casa Branca. O gesto materializa um programa de governo: o jovem de 37 anos, nascido em Miami, exibia ali sua identidade com a extrema-direita global, em clara tentativa de virar um jogo difícil.
A reta final da contenda repete um padrão observado na última década, um empate entre o centro-esquerda e a extrema-direita, disputado voto a voto. Luisa González, aliada do ex-presidente Rafael Correa, chega pouco à frente de Noboa em duas pesquisas de intenção de voto. Na sondagem do instituto Negócios & Estratégias, ela alcança 51,4%, contra 48,1% de seu oponente. Um segundo levantamento, conduzido pela empresa Pedro Cango, afere 51,9% para a advogada e ex-ministra, diante de 48,1% obtido pelo magnata da banana. Os números não estão longe dos resultados de primeiro turno, realizado em 9 de fevereiro, quando Noboa amealhou 44,17% dos sufrágios e sua oponente 44%, num enfrentamento que contou com mais 14 postulantes.
No mesmo 29 de março em que o atual presidente desfilava na sede do império, González recebia o apoio do partido Pachakutik, braço político da Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador. Seu presidente, Leonidas Iza, foi o terceiro colocado na primeira volta, alcançando 5,25% do total.
Noboa foi eleito para um mandato-tampão de 18 meses, a partir do fim antecipado da presidência do empresário Guillermo Lasso, empossado em maio de 2021 e que deixou o poder em novembro de 2023, em meio a uma grave crise política. O empresário buscou transformar sua curta passagem pelo cargo em uma longa campanha eleitoral, rumo a um mandato integral. Apoiado pela mídia e pela quase totalidade das camadas dominantes locais, o direitista buscou deixar uma marca de impacto em sua passagem pelo Palácio de Carondelet, sede do governo. O foco da gestão foi o combate implacável à criminalidade. Seu modelo é Nayib Bukele, presidente de El Salvador, que faz as vezes de um Mussolini de bermuda e boné, e que transformou seu país num Estado policial.
Após um violentíssimo combate a gangues urbanas e redes de traficantes de drogas, Bukele se orgulha de comandar o Estado proporcionalmente mais encarcerado do mundo, com pouco mais de 1% da população atrás das grades. A grande obra de sua gestão é o Centro de Confinamento de Terrorismo, na cidade de Tecoluca, a 74 quilômetros da capital, San Salvador. Trata-se do maior presídio de todas as Américas, com capacidade para abrigar 40 mil detentos. No edifício não existem pátios, áreas externas para recreação ou banho de sol. Com 90% de aprovação popular, Bukele tornou-se paradigma da extrema-direita global. Para lá, Trump mandou deportar mais de duas centenas de imigrantes venezuelanos, supostos integrantes de grupos criminosos.
Candidata de Rafael Correa, a advogada aparece nas pesquisas ligeiramente à frente
Noboa segue o exemplo à risca. Na viagem a Washington, levou na bagagem a promessa de eliminar o artigo 5º da Constituição, aprovada em 2008, durante o governo de Correa: “Não será permitido o estabelecimento de bases militares estrangeiras ou instalações estrangeiras para fins militares”. Até aquele ano, o Equador abrigava a base aérea estadunidense de Manta, situada a 380 quilômetros de Quito. A possibilidade da reinstalação da guarnição é justificada pelo pupilo de Trump, para quem os “Estados Unidos ajudarão no combate ao narcotráfico”. Além disso, como parte da militarização governamental, o mandatário anunciou para a área de segurança pública a contratação de Erik Prince, fundador da Blackwater, empresa militar privada dos EUA que recruta mercenários para ações de combate ao redor do mundo.
Noboa não poupa abusos claros de poder. Há exatamente um ano, as forças armadas invadiram a Embaixada do México, em Quito, para prender o ex-vice-presidente Jorge Glas, ali asilado. A ação afronta convenções internacionais e equivale à invasão territorial. Apesar da condenação de organismos internacionais, o governo não voltou atrás.
O Equador enfrenta, desde 2018, um cenário de crescente violência gerada pela ação de cartéis da droga, que têm como alvo lideranças políticas, integrantes do judiciário, jornalistas e ativistas de toda ordem. O exemplo mais dramático, em anos recentes, foi o assassinato de Fernando Villavicencio, candidato presidencial, durante a campanha de 2021. Nos últimos dois anos, mais de 30 figuras públicas foram mortas. Some-se a isso uma situação econômica com aumento dos índices de pobreza e baixo investimento, que ainda se recupera dos impactos da epidemia de Covid-19. O Equador foi um dos países que apresentou a maior proporção de mortes pelo vírus, entre 2020 e 2021.
O grande personagem da política equatoriana, que ainda pauta aliados e opositores, é o ex-presidente Correa. Figura destacada da onda de presidentes progressistas da América do Sul, entre 1998 e 2015, que inclui Lula, Evo Morales, Hugo Chávez, Nestor e Cristina Kirchner, Pepe Mujica e Fernando Lugo. Após uma administração que melhorou significativamente vários indicadores sociais, Correa passou a ser acusado de corrupção e favorecimentos ilícitos. Condenado à revelia a oito anos de prisão, num processo com provas pouco consistentes, o ex-presidente acusa a Justiça de praticar lawfare. Desde 2017 vive na Bélgica, com a família.
Durante a realização do primeiro turno, o governo ordenou o fechamento de fronteiras e manobras de grande visibilidade das forças armadas nas principais cidades do país. Para a volta às urnas, Noboa começou a mobilizar tropas para ações de impacto em todo o território. Até aqui, a espetacularização fardada não tirou o ligeiro favoritismo de González. O Equador agita-se frente ao dilema de ser ou não ser um quintal do Trumpistão. •
*Historiador e professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC.
Publicado na edição n° 1357 de CartaCapital, em 16 de abril de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Ser ou não quintal’
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