Mundo
Senhores das armas
O aumento das tensões leva à explosão do gasto militar mundial e estimula o discurso belicista até no Brasil


O gasto militar mundial bateu recorde em 2024 e tudo indica que deve continuar a subir neste e nos próximos anos, sem sinal de desaceleração. Desde o fim da Guerra Fria, em 1991, o mundo não gastava tanto dinheiro com armamentos como agora, e o Brasil dá sinais de querer acompanhar essa corrida.
No ano passado, o planeta atingiu o maior patamar de gastos bélicos em mais de 30 anos. Foram 2,7 trilhões de dólares, aumento de 9,4% em relação a 2023. Estados Unidos, China, Rússia, Alemanha e Índia lideram o ranking, nessa ordem, e respondem, juntos, por 60% do total global. Em termos de crescimento porcentual, a nova corrida às armas é puxada por uma Europa que interpreta a invasão da Ucrânia como prenúncio de uma ação hostil da Rússia contra o continente. A sensação de insegurança europeia ganhou novo impulso após o presidente norte-americano, Donald Trump, ter se aproximado de Vladimir Putin, dando sinais de que o apoio dos EUA à Otan não é tão sólido e inquestionável como no passado. Mais recentemente, os voos de drones russos sobre países europeus tornaram ainda mais palpável a previsão de uma guerra, justificando a mobilização de recursos que agora consumirão o equivalente a ao menos 2% do PIB das nações do Velho Continente.
Na América Latina, as ações hostis dos EUA contra a Venezuela e o Brasil acenderam a luz amarela. Desde os anos 1960, a região não se sentia tão explicitamente fustigada pelos norte-americanos. No caso brasileiro, a hostilidade veio na forma de sanções unilaterais contra integrantes do Supremo Tribunal Federal envolvidos no julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro e na imposição de altas taxas contra exportações de uma série de produtos. Uma conversa entre os presidentes Lula e Trump na segunda-feira 6 abriu, porém, uma via de negociação antes inexistente entre as duas maiores economias do continente. Na Venezuela, o caso é ainda mais grave, com os EUA a deslocar tropas para o Caribe, perto da costa do país governado por Nicolás Maduro, a quem prometeram derrubar com o uso da força.
Em 2024, os investimentos bélicos passaram de 2 trilhões de dólares
A inesperada militarização do entorno brasileiro e a escalada de declarações e atos inamistosos dos norte-americanos contra o Brasil ocorreram pouco antes de o ministro da Defesa, José Múcio, defender o aumento dos gastos militares. Em 30 de setembro, Múcio foi ao Senado reclamar dos atuais 135 milhões de reais previstos para a pasta em 2025. “Eu vim atrás de ajuda”, implorou aos integrantes da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional, explicando que “a diplomacia e a defesa são como irmãs inseparáveis: duas armas à disposição do Estado para vencer a guerra da sobrevivência neste mundo de constantes transformações”.
A declaração é um eufemismo para as ameaças que o Brasil começa a perceber de forma mais clara contra si e em seu entorno. Semanas antes, o ministro de Minas e Energias, Alexandre Silveira, havia dito, na cerimônia de posse dos novos diretores da Autoridade Nacional de Segurança Nuclear, no Rio de Janeiro, que “arroubos internacionais muito graves no mundo” atual justificariam o Brasil pensar no uso da tecnologia atômica “também para a defesa nacional”. “Um país como o nosso – prosseguiu o ministro –, que tem 11% da água doce do planeta, clima tropical, solo fértil e tantas riquezas minerais, precisa levar muito a sério a questão nuclear.” Na sequência, o ministério divulgou nota criticando o que chamou de “especulação” em torno das declarações do titular da pasta, e lembrou que o Brasil cumpre com suas obrigações nacionais e internacionais contra as armas atômicas.
As obrigações às quais a pasta se refere estão inscritas na Constituição de 1988, que proíbe o uso da energia nuclear para fins militares. O País resiste, no entanto, em aderir a documentos internacionais que reforçariam essa obrigação. O principal deles é o Tratado Sobre a Proibição de Armas Nucleares, que o Brasil assinou em 2017, mas ainda não ratificou. Para levar esse processo de adesão até o fim, o documento teria de passar pelo Congresso, mas se encontra retido nas mãos do relator, o deputado federal Luiz Philippe de Orleans e Bragança (PL–SP), que disse a CartaCapital ter “urgência zero” na tramitação. “O Brasil precisa de autonomia, tecnologia e coragem para enfrentar o mundo como ele é, não como alguns idealistas gostariam que fosse”, afirmou o parlamentar em seu voto contrário à adesão ao tratado internacional que busca impedir a fabricação, estocagem, uso ou transferência de armas nucleares no mundo.
Para Cristian Wittmann, professor da Universidade Federal do Pampa, o aumento mundial de gastos militares é uma resposta “aos conflitos em curso e ao enfraquecimento do Direito Internacional e do multilateralismo”. Na avaliação do acadêmico, também integrante da Campanha Internacional pela Abolição das Armas Nucleares, organização vencedora do Nobel da Paz em 2017, há hoje uma falta de confiança nos mecanismos criados para prevenir e coibir as guerras, o que faz com que os países voltem a considerar as armas nucleares como “uma forma nacional de afastar a interferência externa”. No caso do Brasil, Wittmann vê um “distanciamento dos princípios históricos brasileiros, de afastar o uso militar da energia nuclear”. Ele enxerga “uma contradição por parte de um governo que diz querer fortalecer o multilateralismo, mas que adota uma postura nacionalista, de aumentar o próprio gasto militar”, como pediu Múcio em sua visita ao Congresso.
Quando falam em aumento de gastos, em todo caso, políticos e militares brasileiros mencionam sempre investimentos em tecnologia de ponta, como os caças Gripen comprados da Suécia e os submarinos com propulsão nuclear, construídos em parceria com a França, mas a verdade é que 78% do total é consumido com pessoal. Nos EUA, esse porcentual é de apenas 22%. Entre salários da ativa e pensões, o País gastou 77,4 bilhões de reais em 2024 com as Forças Armadas. •
Publicado na edição n° 1383 de CartaCapital, em 15 de outubro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Senhores das armas’
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