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Senhor da guerra

O líbio Khalifa Haftar está por trás do avanço dos paramilitares no Sudão

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Onipresente. Acusado de crimes de guerra em seu país, Haftar agora semeia o conflito sudanês – Imagem: Ministério da Defesa/Líbia e AFP
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O líder guerreiro líbio ­Khalifa Haftar ajudou a preparar as Forças de Apoio Rápido (FAR), milícia que agora luta pelo controle do ­Sudão, para a batalha nos meses que antecederam a violência devastadora de 15 de abril, confirmaram ao Observer ex-autoridades, comandantes e fontes da milícia no Sudão e no Reino Unido.

O envolvimento de Haftar, que domina grande parte da região leste da Líbia, aumenta os temores de um conflito prolongado no Sudão, alimentado por interesses externos. Analistas descrevem um “cenário de pesadelo”, com vários atores e poderes regionais travando uma guerra por procuração no país de mais de 45 milhões de habitantes.

Um novo esforço para impor o cessar-fogo às facções em guerra no Sudão fracassou no sábado 22, com combates contínuos, ataques aéreos e bombardeios em Cartum, a capital. Houve ainda novos confrontos na região de Darfur, no Sudoeste. Sabe-se que mais de 400 pessoas morreram no conflito até agora, embora se acredite que o número real seja muito maior.

O combate colocou unidades do exército leais ao governante militar do Sudão, general Abdel Fattah al-Burhan, contra as FAR, lideradas por ­Mohamed ­Hamdan Dagalo, conhecido como ­Hemedti, vice-chefe do conselho governante. Ambos acreditam que podem assumir o controle inconteste dos recursos no Sudão e de seu estado decadente, mas ainda poderoso. Nenhum dos dois parece inclinado a fazer concessões.

As ONGs locais estão alertando seus funcionários para se prepararem para o aumento da violência, agora que o mês sagrado muçulmano do Ramadã terminou. As fontes disseram ao Observer que Haftar passou informações cruciais para ­Hemedti, deteve seus inimigos, aumentou as entregas de combustível e possivelmente treinou um destacamento de centenas de combatentes das FAR em guerra urbana, entre fevereiro e meados de abril.

A conexão de Haftar com ­Hemedti remonta a muito antes da queda de Omar al-Bashir, governante autoritário veterano do Sudão, após meses de protestos populares em 2019. No entanto, o relacionamento aqueceu-se nos últimos anos, com Hemedti enviando mercenários à Líbia para lutar ao lado da força militar de Haftar, o autodenominado Exército Nacional da Líbia (ENL).

Hemedti e Haftar também colaboraram em uma série de operações de contrabando altamente lucrativas, com comandantes de nível médio em ambas as milícias estabelecendo laços estreitos enquanto gerenciam o trânsito de cargas ilícitas valiosas entre os dois países, disseram especialistas ao Observer. O Sudão e a Líbia estão localizados nas principais rotas de tráfico humano, de narcóticos e muito mais.

Nas últimas semanas, com o surgimento do conflito entre as FAR e as forças de Burhan, Haftar fez esforços para apoiar Hemedti. Eles foram, porém, cuidadosamente calibrados, pois nem ­Haftar nem seus patrocinadores internacionais, os Emirados Árabes Unidos e a Rússia, querem se comprometer inteiramente com um dos lados num conflito com resultado incerto. Haftar também deve ter cuidado para não alienar apoiadores no Egito que defendem Burhan. Um comandante de milícia dentro do ENL disse que sua força está “pronta para apoiar (Hemedti), mas ainda estamos monitorando o desenrolar da situação no Sudão”.

Apenas alguns dias antes do início do conflito, Haftar ordenou a prisão de um braço direito de Musa Hilal, comandante da milícia sudanesa que é inimigo ferrenho de Hemedti. As forças de Hilal foram responsáveis por infligir pesadas perdas a mercenários russos do grupo Wagner – outro aliado de Haftar – na vizinha República Centro-Africana, numa emboscada perto da fronteira sudanesa no início deste ano.

Hemedti enviou mercenários à Líbia para lutar ao lado de Haftar e, agora, colhe o apoio do líder guerrilheiro

Em outra demonstração de apoio, um dos filhos de Haftar voou para Cartum para doar 2 milhões de dólares ao Al-Merrikh Club, um dos dois grandes times de futebol do Sudão, que passa por dificuldades financeiras. O clube é associado a Hemedti, que ajudou a reformar seu estádio. Depois de anunciar o presente, Sadeeq Haftar foi recebido por Hemedti.

Durante a visita, Hemedti recebeu um aviso de Haftar de que seus rivais no Sudão se preparavam para avançar contra ele, disseram ao Observer fontes próximas ao ENL. Um dia depois de o filho de Haftar deixar o Sudão, ­Hemedti moveu forças para assumir o controle do aeroporto internacional de ­Merowe, cidade estrategicamente localizada 300 quilômetros ao norte de Cartum, e começou a posicionar combatentes para tomar locais importantes na capital.

Na semana passada, o Wall Street ­Journal informou que Haftar havia enviado pelo menos um carregamento de armas para Hemedti, afirmação negada pelo ENL, enquanto a CNN descreveu voos de bases aéreas administradas pelo ENL organizados pelo grupo Wagner, que tem presença tanto na Líbia como no Sudão.

A Rússia construiu laços estreitos com Haftar e Hemedti, mas Yevgeny ­Prigozhin, fundador do grupo Wagner, negou a informação. Há, porém, relatos de testemunhas em campo sobre aviões que aterrissaram no aeroporto de ­Al-Jawf, em Kufra, no sul da Líbia, portando armas que depois foram enviadas em comboios de caminhões para o Sudão.

Haftar é uma figura polarizadora, cujos inimigos o acusam de crimes durante a guerra civil na Líbia, de 2014 a 2020. Em 2019, um relatório da ONU disse que mil soldados sudaneses das FAR foram enviados para a Líbia, por Hemedti, para ajudar o ENL na luta contra o governo internacionalmente reconhecido em Trípoli.

Antigos e atuais oficiais líbios disseram ao Observer que, nos últimos meses, Haftar treinou centenas de combatentes das FAR, que não têm experiência em guerra urbana, em técnicas e táticas que seriam necessárias em uma potencial batalha por Cartum e outras cidades.

Jalel Harchaoui, especialista em Líbia e membro associado do Royal United Services Institute, disse que o apoio de Haftar e seus patrocinadores será avaliado com cuidado. “Eles querem que ­Hemedti sobreviva, pelo menos…”, disse Harchaoui. “Combustível faz mais sentido do que armas ou munições, e é a coisa mais segura que ele poderia obter de amigos líbios.”

Os carregamentos de combustível estão seguindo em caminhões do porto mediterrâneo de Benghazi, disseram as fontes, embora alguns tenham sugerido que outra provável origem seja a refinaria de Sarir, ao Sul, que foi recentemente dominada pelo ENL. As forças de ­Hemedti estão com escassez de combustível porque o abastecimento de ­suas bases principais em Darfur foi cortado pelos partidários de Burhan em Cartum, que ainda controlam grande parte da infraestrutura de petróleo no Sudão.

A maioria dos mercenários sudaneses que lutam pelo ENL é de ex-rivais de ­Hemedti, e isso também pode impor limites à ajuda oferecida por Haftar, segundo especialistas. •


Tradução: Luiz Roberto M. Gonçalves.

Publicado na edição n° 1257 de CartaCapital, em 03 de maio de 2023.

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