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Semente no deserto

Lula defende uma reforma ampla da governança das Nações Unidas, amordaçada e em declínio constante

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Opostos. O discurso pacifista de Lula contrasta com a beligerância de Biden, cujo governo prolonga a guerra na Ucrânia e apoia o massacre perpetrado por Israel – Imagem: Brendan Smialowski/AFP e Angela Weiss/AFP
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A ofensiva de Israel no Líbano contra o Hezbollah piora um cenário internacional dramático. No ano passado, 92 países envolveram-se em conflitos armados, recorde desde a Segunda Guerra Mundial. Os gastos militares, crescentes desde 2009, tiveram a maior alta, 6,8%, e subiram em todos os continentes, algo inédito. Liderados por Estados Unidos e China, totalizaram 2,4 trilhões de dólares, quase o tamanho do PIB do Brasil. Mais belicismo e mais desigualdade social. Os cinco principais bilionários dobraram suas fortunas desde 2020 e 148 empresas ampliaram os lucros em 50%, enquanto 5 bilhões de seres humanos empobreciam e 733 milhões passavam fome em 2023. Tudo somado, é um desastre suficientemente grande para estimular uma reviravolta na governança global, a começar pela Organização das Nações Unidas. “O mundo está desgovernado”, afirmou o presidente Lula ao receber um prêmio pelos esforços contra a fome, concedido pela Fundação Bill ­Gates e entregue pelo próprio em Nova York.

Em quatro dias na cidade, viagem programada em razão da Assembleia-Geral anual da ONU, Lula defendeu refundar a entidade, com base em dados sobre guerra, armas, desigualdade e fome. Temperou a proposta com catástrofes ambientais vistas e à vista. No passado, empunhara a bandeira da reforma do Conselho de Segurança, clube com cinco integrantes cativos – China, EUA, França, Reino Unido e Rússia – desde 1945. Agora, vai além. Prega mudanças não só do Conselho, mas em outros espaços das Nações Unidas, como a Assembleia-Geral, o Conselho Econômico e Social e a Comissão de Consolidação da Paz. “Não bastam ajustes pontuais”, declarou na tribuna da organização na terça-feira 25. “O Brasil nunca tinha ido tão longe. É uma solução mais ampla, surpreendeu. A premissa parece ser que a reforma do conselho de segurança não vai andar”, avalia ­Dawisson Belém Lopes, professor de Política Internacional e Comparada da Universidade Federal de Minas Gerais.

Um dia após o discurso na Assembleia-Geral, Lula voltou à organização para uma reunião de chanceleres do G-20, formado pelas maiores economias e que, até novembro, tem o Brasil no comando rotativo. Pela primeira vez, o grupo, nascido em 1999, reuniu-se na sede das Nações Unidas. O brasileiro adicionou um tijolo na ideia refundacional: “O Brasil considera apresentar uma proposta de convocação de conferência de revisão da carta da ONU, com base no artigo 109”. A carta é de 1945, documento inaugural das Nações Unidas. Seu artigo 109 admite a realização de uma conferência de revisão, caso haja apoio de dois terços dos integrantes da Assembleia-Geral e de 9 dos 15 participantes do Conselho de Segurança. A mudança em si teria de ser aprovada por dois terços dos países e por todo o Conselho.

O mundo é outro, mas as estruturas da ONU continuam as mesmas de 1945

Na criação das Nações Unidas foram desenhadas seis instâncias: a Assembleia-Geral, a Secretaria-Geral, o Conselho de Segurança, o Conselho Econômico e Social, a Corte Internacional de Justiça e o Conselho de Tutela. Ao defender uma chacoalhada na governança mundial, Lula busca mais voz e poder para o Sul Global. A ONU surgiu com 51 países, hoje possui 193. “A geopolítica de hoje é diferente da geopolítica de 1945 (…). Estamos defendendo é que haja uma outra geopolítica”, afirmou em entrevista coletiva antes de voltar ao Brasil.

Caso a Assembleia-Geral tivesse mais peso em questões de paz e segurança, o Sul Global, sinônimo de mundo emergente, ganharia voz. Idem o Conselho Econômico e Social, Ecosoc na sigla em inglês. Tem 54 participantes eleitos para um mandato de três anos, dos quais 65% da África, da América Latina e da Ásia. Seu presidente atual é do Zimbábue. É a única arena onde a sociedade civil pode ter representantes. Serve para discutir assuntos econômicos e sociais. No discurso na ONU, Lula disse que o Ecosoc deveria ter “capacidade real de inspirar as instituições financeiras”. A arquitetura financeira global é outra a precisar de reforma, segundo o presidente. O Fundo Monetário Internacional, fundado na mesma época da ONU, tinha 44 países e 12 representantes ao nascer. Hoje tem 190 e só 25 cadeiras.

Cicerone. Haddad promoveu a reunião de Lula com as agências de risco – Imagem: Diogo Zacarias/Ministério da Fazenda

Para Lula, o Ecosoc deveria ainda ser transformado “no principal foro para o tratamento do desenvolvimento sustentável e do combate à mudança climática”. As queimadas no Brasil, causadas por seca inédita em 75 anos e incêndios criminosos, levaram o presidente a dar mais destaque ao tema neste ano. Citou oito vezes a palavra “clima” e suas derivadas (foram seis menções em 2023) e uma vez “aquecimento global” (ausente no ano passado). Apontou “crise” e “urgência” climática, comentou que “o mundo está farto de acordos climáticos não cumpridos”. Um deles é o de Paris, de 2015, de repasse anual de 100 bilhões de dólares dos países mais ricos aos mais pobres, em troca de preservação florestal. Os EUA o deixaram em 2017, quando Donald Trump assumiu a Casa Branca, para a qual tenta voltar em 2025, ano de COP-30, em Belém. “O negacionismo sucumbe diante das evidências do aquecimento global”, afirmou Lula na ONU. “Como a gente vai cuidar do planeta se não cumpre acordos ambientais?”, dissera no evento de Bill Gates.

Horas antes de se encontrar com o bilionário, Lula reunira-se, na casa do embaixador brasileiro na ONU, com o presidente mundial da Shell, Wael Sawan. A petroleira enveredou no Brasil pelo ramo do biocombustível. Por intermédio da ­Raízen, joint venture com a Cosan, de ­Rubens Ometto, o maior doador para campanhas políticas brasileiras, tem construído fábricas que usam bagaço da cana como matéria-prima. A companhia entregou ao petista um estudo sobre transição energética. A análise considera que o Brasil precisará de nova fronteira de petróleo até a próxima década, para atender à demanda interna e ocupar mercados externos. Em um relatório de julho, a Empresa de Pesquisa Energética também expôs a visão a favor de uma nova fronteira. Segundo a EPE, a produção petrolífera local atingirá o pico em 2030, com 5,3 milhões de barris diários, e passará a cair. A produção fechou 2023 em 3,3 milhões, similar àquela do Irã. “Há necessidade imediata do esforço exploratório para conter o declínio da produção prevista para os próximos anos”, diz o documento da EPE.

A candidata a “nova fronteira” é a Margem Equatorial, área litorânea que vai do Rio Grande do Norte ao Amapá. A Petrobras tenta perfurar poços para descobrir se há petróleo na altura do Amapá, na Foz do Rio Amazonas. Até aqui, o Ibama não deixou. O órgão deve decidir até o fim do ano sobre um pedido de revisão da negativa à licença ambiental. A Shell tem interesse nessa nova fronteira. Em 2011, descobriu petróleo no litoral da Guiana Francesa, ao lado do Amapá.

“Não precisa ouvir só a Faria Lima”, afirmou Lula ao justificar a reunião com as agências de rating

Na ONU, Lula disse que “é hora de enfrentar o debate sobre o ritmo lento da descarbonização do planeta e trabalhar por uma economia menos dependente de combustíveis fósseis”. O maior agente “carbonizador” é o petróleo. Não foi contraditório dizer isso e receber a Shell? “Nenhuma contradição”, defendeu-se, ao ser questionado na entrevista coletiva antes de voltar ao Brasil. Ele nunca falou claramente, mas é favorável a explorar a Margem Equatorial, pois crê que o País ainda não pode abdicar de petróleo. “Precisamos ter consciência de que a gente não está num mundo que pode dizer que pode acabar o combustível fóssil, que vai ter combustível alternativo”, acrescentou.

Além do executivo da Shell, Lula conversou em Nova York, separadamente, com os funcionários das principais agências de rating, aquela turma que dá nota às nações conforme o bom-mocismo perante o “mercado”. Yann Le ­Pallec, da Standard & Poor’s, e Michael West, da Moody’s, estiveram na casa do embaixador brasileiro na ONU, enquanto Paul Taylor, da Fitch, foi ao escritório da embaixada. Antes de embarcar para os EUA, Lula havia perguntado ao ministro da Fazenda, Fernando Haddad, quando o País voltará a ser “grau de investimento”, o principal selo de bom-mocismo. Haddad acha possível que ao menos uma das agências o devolva até 2026.

No papo com as agências, Lula queria entender a visão delas sobre o País e explicar a sua posição. Para ele, é preciso que as agências “saibam da boca do presidente” qual a situação do Brasil. “Não precisa ouvir só a Faria Lima”, declarou na entrevista. Com o petista no poder, a turma da Faria Lima não dá uma dentro quanto ao PIB – e talvez nem se interesse em fazê-lo. Em janeiro de 2023, projetava menos de 1% de crescimento no ano, e o resultado foi 2,9%. Em janeiro de 2024, apostava em 1,5%, e no primeiro semestre deu 2,9%. A última estimativa do time de Haddad é de 3,2%. Com ao menos 2,5%, o PIB per capita será recorde, conforme Cláudio Considera, economista da FGV.

Combustível. O presidente brasileiro esteve com Sawan, principal executivo da Shell – Imagem: Redes Sociais/Shell International Limited

Sem melhorar a vida da população, é difícil conter o avanço da extrema-direita. “A democracia precisa responder às legítimas aspirações dos que não aceitam mais a fome, a desigualdade, o desemprego e a violência”, discursou Lula. Foi a mesma visão apresentada em um debate às margens da Assembleia-Geral organizado por ele e pelo primeiro-ministro espanhol, Pedro Sánchez, que vê uma “onda reacionária” global. O debate chamava-se “Em defesa da democracia, combatendo os extremismos” e contou com 16 chefes de Estado ou governo, entre eles o francês Emmanuel Macron, o colombiano Gustavo Petro e o canadense Justin Trudeau. “Para devolver a esperança a milhões de deserdados da globalização, precisamos colocar a economia a serviço do povo”, comentou Lula.

O sistema democrático, acredita o presidente, tem culpa no cartório pelo avanço do extremismo, por ser hoje um mero ritual eleitoral a cada quatro ou cinco anos. Há outra responsável, as redes sociais, terra sem lei que precisa de regulação internacional. Lula havia convidado Joe Biden para o debate, em um telefonema em julho. O norte-americano em fim de mandato não compareceu, mandou o número 2 da diplomacia. É na sucessão de Biden que repousam atualmente as esperanças da extrema-direita global de ganhar fôlego: Trump. Em seu último discurso na ONU, Biden falou bastante de guerra, citou a palavra 16 vezes. Um contraste com o orador que o antecedera, Lula. “Os EUA são uma nação guerreira, o Brasil é pacifista. Os dois macroconflitos, Ucrânia e Palestina, citados pelo presidente Lula em ­suas exortações à paz expõem a impotência da ONU”, diz Dawisson Lopes, da UFMG.

A ONU está nua. •

Publicado na edição n° 1330 de CartaCapital, em 02 de outubro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Semente no deserto’

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