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Sem trégua

Nem a guerra freia a especulação imobiliária em Kiev

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Armadilha. Autoridades locais usam os danos causados por bombardeios como desculpa para desapropriar imóveis e remover os moradores de áreas centrais – Imagem: Ercin Erturk/Anadolu Agency/AFP
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Cerca de uma hora depois que as sirenes de ataque aéreo tocaram na madrugada de 10 de agosto, os moradores da Rua Yaroslavska, no coração do badalado bairro de Podil, em Kiev, ouviram um prédio desabar. Alguns olharam pelas janelas, esperando ver os restos fumegantes de um míssil russo. Em vez disso, à luz do amanhecer, duas escavadeiras destruíam uma elegante mansão de 200 anos. Em poucas horas, a casa de 1811 virou um monte de escombros. Manifestantes reuniram-se na rua atacando os incorporadores e a prefeitura. “O que não foi destruído pelos foguetes russos está sendo demolido por nossas autoridades e construtoras”, dizia um cartaz.

A guerra não diminuiu o apetite por propriedades de alta qualidade em Kiev, nem conteve a corrida para obter terrenos baldios para construção. Os preços dos imóveis caíram apenas brevemente, quando as forças russas sitiaram a cidade na primavera passada, e depois se recuperaram quando as ruas voltaram à vida. A capital ucraniana tem extensas defesas aéreas e as linhas de frente estão distantes, por isso alguns residentes regressaram e ela se tornou novo lar para as pessoas que fogem dos combates mais a leste.

Ksenia Semenova, integrante do conselho municipal dedicado à proteção da Kiev histórica, recebeu a primeira ligação pós-invasão sobre uma demolição ilegal em 25 de fevereiro de 2022, um dia depois de a Rússia ter lançado mísseis contra a cidade e enviado suas tropas. “Os responsáveis pela obra me disseram: ‘Achamos que era uma boa ideia, muitos deixaram Kiev, então não iríamos perturbar o trabalho ou o sono de ninguém’.”

Embora os incorporadores procurem tirar proveito da invasão russa, ela também estimulou a oposição a seus planos. Ao justificar a guerra, Vladimir Putin negou a identidade nacional da Ucrânia, reforçando o apoio popular aos ativistas que protegem imóveis históricos. “Após a invasão, quando a Rússia disse que não somos um país real e não temos história, o patrimônio cultural tornou-se mais importante para as pessoas”, disse Semenova.

Devido ao apreço pela história ucraniana, a destruição do edifício em Podil, em agosto, causou protestos. O prefeito ­Vitali Klitschko prometeu investigar e o proprietário do imóvel postou um vídeo desafiador no YouTube. Relaxado em um sofá e agitando documentos que, segundo diz, apoiam sua posição, Serhiy Boyarchukov afirma que planeja construir um apart-hotel de quatro andares e um club-house onde ficava a elegante casa térrea – um raro exemplo de construção residencial de madeira na cidade. “Não houve demolição completa, mas uma desmontagem parcial, e o porão e uma parede permaneceram no lugar”, disse ele, acrescentando que a obra foi autorizada pelo Ministério da Cultura em março. Ele não esclareceu por que a demolição começou às 5 horas, durante um alerta de ataque aéreo.

Os ativistas estão céticos de que a investigação do prefeito possa realmente responsabilizar alguém. Dizem que durante anos as autoridades municipais permitiram que o tecido histórico de Kiev fosse vendido, demolido ou deteriorado para além do ponto de reparação.

Oleh Symoroz era um veterano dessa luta pacífica antes de se voluntariar para combater por Kiev. Quando a cidade foi salva e perdeu as pernas na linha de frente ao leste da Ucrânia, foi para lá. De volta para um tratamento de reabilitação, o combatente ficou furioso ao descobrir que a cidade estava sendo destruída por dentro. “Sinto-me péssimo por essa destruição estar acontecendo agora”, afirmou, em entrevista no hospital onde está reaprendendo a andar, com o suporte de próteses. “Estamos fora, lutando pela Ucrânia, e eles aproveitam a oportunidade para devastar a cidade.”

Outra moradora, Tetiana, esperava que as autoridades municipais ajudassem, quando um drone russo atingiu apartamentos do seu prédio na Rua Zhylyanska, a poucos quarteirões da principal estação ferroviária de Kiev. Quatro de seus vizinhos morreram, incluindo uma mulher grávida de seis meses, e o corredor e a escada que levava à sua porta foram destruídos.

As demolições de prédios históricos não respeitam nem sequer os alarmes de ataques aéreos

Ela ficou traumatizada com o ataque, mas não se preocupou em ficar sem teto. Tinha visto políticos nos noticiários visitando outros edifícios atingidos por ataques russos e prometendo ajudar. ­Tetiana ficou surpresa ao receber uma mensagem três dias depois, anunciando que seu prédio havia sido declarado estruturalmente inseguro e teria de ser demolido. O laudo anexado era de 17 de outubro, o dia do ataque. “Quando o responsável por esse relatório poderia tê-lo feito?”, indagou. “O sol se pôs logo após os bombeiros terminarem de apagar as chamas, o toque de recolher era às 21 horas.”

Os sobreviventes foram pressionados a ceder os direitos de seus apartamentos. Em troca, seriam colocados numa lista de espera para novas casas nos arredores de Kiev, a cerca de 20 quilômetros de distância. Tetiana recusou, marcando o início de um pesadelo burocrático que a deixou sem residência por quase um ano, quando morou com amigos e parentes.

Os moradores do prédio tentaram constituir uma associação – passo fundamental para contratar um novo laudo e proteger o edifício –, mas o pedido de registro foi rejeitado 15 vezes pelas autoridades municipais por questões técnicas. Tetiana, que pediu para ser identificada apenas pelo primeiro nome, acredita que a prefeitura quer usar os danos causados no dia 17 de outubro como desculpa para demolir seu edifício e confiscar o terreno.

“Mesmo que o nosso edifício não seja sólido, não compreendo a razão de não investirem na reconstrução. Por que ­querem nos enxotar?” Questionadas sobre o edifício, as autoridades municipais de Kiev limitaram-se a dizer: “A casa não pode ser reconstruída”. Tetiana está determinada a recuperar seu apartamento histórico, mas sabe que a batalha será longa. “Há muitos idosos neste edifício. Talvez as autoridades de Kiev tenham pensado: ‘Vamos esperar, talvez eles morram e o problema será resolvido’. Não levaram em conta que ainda existem jovens que decidiram lutar por seus direitos.” •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

Publicado na edição n° 1277 de CartaCapital, em 20 de setembro de 2023.

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