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Sem trégua
No retorno para casa, moradores de um bairro de Kharkiv se deparam com a cidade em ruínas e são surpreendidos por nova ofensiva russa


Tatyana Marchenko, de 63 anos, quando voltou para sua casa em Kharkiv no início deste mês, entrou num mundo de destruição. Roupas e brinquedos de crianças estavam espalhados pelos caminhos entre os prédios incendiados, muitos dos quais tinham buracos enormes por onde as bombas entraram. “Vivi no mesmo bairro, Saltivka, minha vida inteira. E agora acabou, é um show de horrores.”
Saltivka – um conjunto habitacional da classe trabalhadora da era soviética, inicialmente destinado aos operários da cidade e suas famílias – abrigava cerca de 600 mil habitantes antes da guerra, o que o tornava um dos maiores bairros da Europa. Embora reconhecidamente superlotado, era cheio de energia, lembrou Marchenko. Mas desde o início da invasão pela Rússia, há quatro meses, a região tem sofrido o impacto do bombardeio implacável de Moscou contra a segunda cidade da Ucrânia. Agora, o bairro parece uma cidade fantasma.
Marchenko, como muitos outros, deixou Kharkiv, a apenas 40 quilômetros da fronteira russa, com seu marido nos primeiros dias da guerra, quando tanques inimigos ameaçavam invadir a cidade.
Retornou este mês, encorajada por relatos de amigos e autoridades de que o bombardeio estava diminuindo, após uma contraofensiva ucraniana bem-sucedida que afastou as forças russas dos arredores da cidade. Outros saíram das estações de metrô próximas, que foram transformadas em abrigos onde viveram durante semanas. Coletivamente, agora eles tentam conduzir suas vidas no bairro mais destruído da cidade.
Muitos moradores de Saltivka não têm acesso a gás, eletricidade ou água corrente, e Marchenko é obrigada a carregar grandes garrafas de água até seu apartamento. “Pelo menos mantenho a forma, mas não era assim que imaginava minha aposentadoria”, disse Marchenko, que trabalhou durante 30 anos no correio local. Ela se considera, porém, uma felizarda. Seu apartamento ficou praticamente intocado, além dos pequenos estilhaços que quebraram as janelas e continuavam espalhados pela casa quando ela voltou.
Sem água, gás e eletricidade, os habitantes temem a chegada do inverno
Andando por Saltivka, a pura aleatoriedade dos ataques da Rússia rapidamente se torna aparente – um quarteirão atingido, o próximo intocado, um apartamento transformado em ruínas, outro intacto.
Logo abaixo de Marchenko, no nono andar, um foguete MLR russo destruiu o apartamento de sua vizinha e velha amiga Nastia. “Olhe para isso”, disse Marchenko, enquanto descia um andar para mostrar um grande buraco redondo no que antes era a sala de estar de Nastia. “Neste lugar nossos filhos cresceram juntos. Todas essas memórias se foram.”
Algumas famílias perderam suas casas ou permanecem nos subterrâneos porque ainda estão com muito medo dos ataques russos. Na estação de metrô Heroiv Pratsi (Heróis do Trabalho), no norte de Saltivka, cerca de cem pessoas, na maioria mulheres e crianças, ainda estão escondidas, apesar da reabertura do metrô no início deste mês. Para piorar as coisas, a relativa calma que levou Marchenko e outros a retornarem foi, afinal, enganosa. Na semana passada, Kharkiv sofreu alguns dos piores bombardeios russos, que matou mais de 15 moradores, enquanto crescem as preocupações em Kiev, a capital, de que agora a Rússia esteja preparando outro ataque à cidade.
A luta na Ucrânia se transformou sangrenta guerra de desgaste
As forças russas estão a poucos quilômetros de Saltivka e, de seu apartamento, Marchenko pode ver tropas ucranianas reorganizando suas posições na floresta que se limita com o bairro. Ao longo do dia, explosões eram ouvidas ao fundo, mas muitos em Saltivka agora simplesmente dão de ombros, sem se impressionar e quase acostumados com a ameaça de perigo que não os deixa mais acordados à noite.
Em algum lugar na linha de frente estava o filho de Marchenko, disse ela, apontando para um pequeno santuário que fez para ele em seu apartamento. “Meu filho não era um assassino e não planejava se alistar para lutar. Mas algo mudou nele depois que viu os russos bombardeando civis”, disse ela. “Estou tão feliz porque ele está defendendo nosso país.”
Saltivka é sem dúvida o testemunho mais poderoso que contradiz as repetidas afirmações da Rússia de que seus militares não têm como alvo a infraestrutura civil. “No começo, achamos que a Rússia estivesse apenas recebendo informações erradas, pensando que nossos soldados poderiam estar escondidos em prédios civis”, afirma Sergei Bolvinov, chefe do departamento de investigação da força policial da região de Kharkiv. “Mas agora vemos que esse sempre foi o plano – atacar a infraestrutura civil.”
No total, diz ele, cerca de 2 mil edifícios foram gravemente danificados na cidade, muitos dos quais não serão reparados. “Saltivka, especialmente no norte, está completamente destruída.” Não muito longe da casa de Marchenko fica o devastado mercado Barabashova. Antes da guerra, era o maior e um dos mais movimentados mercados da Europa. Algumas das poucas lojas que permanecem abertas na passagem abandonada e infestada de lixo vendem flores. “Não há mais namoros aqui, mas temos enterros”, comenta Anastasia, dona de uma floricultura com o mesmo nome.
Anastasia afirma que apenas um dia antes de a Rússia lançar a invasão ela fez um pedido “enorme” de tulipas holandesas para 8 de março, Dia Internacional da Mulher. Desde os tempos da União Soviética, a data tem sido amplamente comemorada na Rússia e na Ucrânia, com os homens muitas vezes gastando uma fortuna em flores para suas esposas, mães e irmãs. As tulipas estavam quase apodrecendo. “Elas não são para funerais. As famílias dos soldados mortos só querem lírios.”
A florista diz que ainda está “se chutando” pelo pedido de tulipas, e que praticamente ninguém na cidade de língua russa poderia imaginar que seu grande vizinho realmente invadiria o país. “Ainda penso todos os dias: eu devia ter previsto isso? Devia ter feito esse pedido?”
Estar tão perto da fronteira fez que muitos em Kharkiv, como Anastasia, cujo tio morava na Rússia, desenvolvessem amplos laços culturais e familiares com o país vizinho. A guerra serviu como uma ruptura decisiva entre a cidade e Moscou. “Tudo mudou em 24 de fevereiro e não há como voltar atrás”, disse Bolvinov, o chefe de polícia local que agora se recusa a falar russo no trabalho.
O lar possível. As estações de trem ainda servem de abrigo para quem perdeu a casa – Imagem: Emre Caylak/AFP
Na quarta-feira 22, a maior universidade de Kharkiv anunciou o fechamento de seu Departamento de Literatura Russa, reorganizando-o no Departamento de Filologia Eslava. A cidade também planeja renomear mais de 200 ruas ou praças que celebram artistas, escritores e figuras históricas russas. Para muitos em Saltivka, as mudanças simbólicas fizeram pouca diferença em sua luta diária para sobreviver e seguir em frente.
A maioria dos moradores continua sombriamente pessimista sobre as perspectivas de a guerra terminar em breve. “Quem sabe quanto tempo isso vai durar? Não podemos viver assim por muito mais tempo”, disse Artyom Belousov, 45, que ficou em Saltivka durante a guerra para cuidar de sua mãe que sofre de demência.
A luta na Ucrânia se transformou numa sangrenta guerra de desgaste, com ambos os lados fazendo poucos avanços estratégicos. Líderes ocidentais começaram a alertar que poderá levar anos para a guerra terminar. E as autoridades locais temem que, mesmo que a Ucrânia consiga expulsar o exército invasor do país, a Rússia ainda poderá disparar foguetes da cidade de Belgorod, do outro lado da fronteira.
Belousov, fumando um cigarro, diz que tenta não pensar nos meses difíceis que estão por vir. “E se o inverno chegar e ainda não tivermos aquecimento? O que será de nós?” •
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1215 DE CARTACAPITAL, EM 6 DE JULHO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Sem trégua “
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