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Sem máscaras

Diante da indecisão dos EUA, Israel avança nos planos de ocupação definitiva do território palestino

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O exército israelense divide a região em corredores – Imagem: Ministério da Defesa de Israel/AFP
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Na manhã da quarta-feira 9, a força aérea israelense alvejou um bloco residencial de quatro andares no bairro de Shujayea, na Cidade de Gaza. Os relatos palestinos descreviam uma completa devastação. Segundo a rede de tevê Al Jazeera, 29 palestinos foram mortos, 55 feridos e 80 continuavam desaparecidos entre os escombros até o início da tarde. O canal colheu o depoimento de Ayub Salim, morador de Shujayea. A área, afirmou, “abarrotada de tendas, com gente deslocada de ­suas casas”, foi atacada por “múltiplos mísseis”. Salim prossegue: “Fragmentos de mísseis voaram em todas as direções. Poeira e destruição encheram todo o lugar. Não podíamos enxergar nada, apenas ouvíamos os gritos”. Os mortos estavam “rasgados em pedaços”.

A nova fase de carnificina foi selada de alguma forma dois dias antes, na segunda-feira 7, durante a visita do primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, a Donald Trump em Washington. O voo fez um desvio no trajeto que partiu da Hungria, após um encontro com Viktor Órban, de mais de 400 quilômetros para evitar espaços aéreos de países propensos a cumprir a ordem de prisão emitida pela Corte Penal Internacional contra Netanyahu.

Trump reiterou seu desejo de explorar Gaza, mas foi dúbio. “Seria uma coisa boa”, disse, os EUA terem alguma presença militar no território e sugeriu novamente que os 2,1 milhões de palestinos fossem deslocados para outros países. Em fevereiro, o republicano havia lançado a ideia de transformar o enclave na “Riviera do Oriente Médio”, sem, claro, a presença indesejável da população local.

A repercussão da visita de Netanyahu entre os israelenses foi negativa, noticiou o diário Haaretz. Além de ter se recusado a derrubar as tarifas impostas a ­Israel e revelado a intenção de estabelecer um diálogo com o Irã a partir do sábado 12, Trump teria sido tímido na reafirmação de seu “plano de Gaza”. O jornal israelense afirmou que o republicano mencionou seu plano da “Riviera” apenas ao ser instado por um repórter judeu de extrema-direita. O presidente norte-americano declarou que “ainda gosta” do projeto, mas que está aberto a “outros” planos.

O outro plano pode ter sido apresentado a Trump em conversa telefônica com Abdel Fattah al-Sisi, presidente do Egito, Emmanuel Macron, presidente francês, e o rei da Jordânia, Abdullah bin ­al-Hussein. O trio estava no Cairo para criar um contraponto diplomático e, de acordo com a Radio France Internationale, a ideia básica é evitar a expulsão dos palestinos, colocar um ponto final na agressão israelense e excluir o Hamas da administração do território, que seria transmitida à Autoridade Palestina.

Se Trump pareceu hesitar, Netanyahu, logo após o encontro, gravou um vídeo no qual detalha conversa com o presidente dos EUA sobre o deslocamento em massa dos palestinos para fora de Gaza. “Estamos em contato com países discutindo a opção para absorver muitos residentes”. No fim de março, o governo israelense aprovou a criação do “Departamento de Emigração Voluntária” para a população do enclave. Na ocasião, o ministro da Defesa, Israel Katz, afirmou que o departamento agirá “para preparar e facilitar a passagem segura e supervisionada (de moradores) para uma saída voluntária a países terceiros”. Em 2 de abril, ­Netanyahu anunciou uma nova fragmentação do território. O exército implementou a linha Morag, com o objetivo declarado de pressionar o Hamas a libertar os 59 reféns israelenses ainda retidos.

Revela-se o que muitos desconfiavam: o objetivo era tomar o enclave, não eliminar o Hamas

Khaled Hroub, pesquisador do grupo palestino, disse que o Hamas de fato sofreu duros golpes nas suas capacidades militar e administrativa. Não poderia ser diferente, avalia, pois “o que vimos é sem precedentes na história recente, com uma força militar poderosa suprida por um constante fluxo de armas pesadas pela maior superpotência do mundo”. Ainda assim, a sobrevivência do Hamas, mesmo enfraquecido, acrescenta Hroub, é surpreendente. “O último lançamento de foguetes contra cidades israelenses é a prova de que conseguiram se reagrupar.”

A ação militar desde a quebra do cessar-fogo congregava, na verdade, os objetivos de destruir o grupo palestino, expulsar seus líderes e dar o controle de Gaza aos israelenses. A nova fragmentação imposta ao território corta a cidade de ­Rafah, no extremo, do resto do território. Ao lado do Corredor Philadelfia, posição israelense na linha da fronteira de Gaza com o Egito, e ao Corredor Netzarim, linha que isola o norte, a nova linha Morag compõe um conjunto militar para sufocar a população e conquistar o território.

A organização israelense Breaking the Silence lançou o relatório Perímetro, com coleta de testemunhos de soldados que serviram no exército em Gaza. Uma de suas conclusões é que as operações não estavam relacionadas com a libertação de israelenses. Uma das missões era criar uma “zona tampão” militar nos limites de Gaza, o que na prática significou promover a terra arrasada e demolir tudo – residências, mesquitas, escolas, fazendas. Essa zona de destruição era chamada de “perímetro”. Um dos soldados descreveu as áreas afetadas como uma espécie de “Hiroshima”. Por meio dessa destruição deliberada e extensa, o exército preparou o terreno para o total controle israelense. Agora, relata o Haaretz, o governo prepara-se para incorporar a parte sul de Gaza, entre a linha Morag e o Corredor Philadelfia, ao seu “perímetro”. O jornal revela que nessa região moravam cerca de 200 mil palestinos, mas que nas últimas semanas a região foi esvaziada pela extensa destruição provocada e pelas ordens de evacuação dos moradores.

Desde outubro de 2003, informa o mais recente despacho da ONU, de 8 de abril, 50.810 palestinos foram mortos. Do total, 15.613 eram crianças. Ainda segundo as Nações Unidas, 66% de Gaza vivem sob um controle implacável da circulação dos civis, que inclui ordens de execução sumária. Sob essas operações, nas últimas três semanas, 390 mil habitantes foram deslocados. Os níveis de insegurança alimentar só pioram: 91% da população enfrentaria uma situação moderada, enquanto 345 mil estão submetidos a uma fome severa. As ações humanitárias seguem sufocadas pela ação militar expandida, incluindo o bloqueio de qualquer entrada de profissionais de saúde, comida e remédios. •

Publicado na edição n° 1357 de CartaCapital, em 16 de abril de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Sem máscaras’

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