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Sem freios
Netanyahu ignora os movimentos pelo reconhecimento do Estado palestino e acelera a ofensiva militar em Gaza


Recentemente, a França e outros 14 países ocidentais – entre eles Austrália, Canadá, Finlândia, Portugal e Espanha – manifestaram a intenção de reconhecer o Estado palestino. “Convidamos aqueles que ainda não o fizeram a se juntarem a nós”, anunciaram em carta conjunta, divulgada pelo ministro francês das Relações Exteriores, Jean-Noël Barrot, na quarta-feira 30. Um dia antes, o premier britânico Keir Starmer havia antecipado que o Reino Unido adotaria a mesma posição na Assembleia-Geral das Nações Unidas em setembro, caso Israel não desse “passos concretos” para encerrar a guerra na Faixa de Gaza.
Pregação no deserto. O primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, não apenas ignorou o movimento internacional de reconhecimento da Palestina, como também dobrou a aposta: convocou seu gabinete de segurança para propor a ocupação total de Gaza, segundo relataram diversos veículos de comunicação israelenses. Em meados de julho, o ex-premier Ehud Olmert já havia alertado que o plano de construir uma “cidade humanitária” – para a qual os civis palestinos seriam deslocados à força e da qual não poderiam mais sair – configuraria uma limpeza étnica. “É um campo de concentração. Sinto muito”, declarou Olmert.
Na prática, toda a Faixa de Gaza já se assemelha a um gigantesco campo de concentração, onde a fome avança de forma alarmante. Em relatório divulgado em 29 de julho, o Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA) apontou que 81% dos lares palestinos relataram consumo insuficiente de alimentos, um salto em relação aos 33% registrados em abril. A análise é baseada na Classificação Integrada de Fases de Segurança Alimentar (IPC, na sigla em inglês), que também indicou um aumento expressivo na fome severa: 24% dos lares enfrentavam essa condição em julho, ante 4% em abril.
A deterioração do quadro coincide com a implantação, em maio, de um novo sistema de distribuição de alimentos, coordenado pela Fundação Humanitária de Gaza (GHF) – uma organização sem fins lucrativos norte-americana que atua sob supervisão do exército israelense e com apoio dos EUA. Na segunda-feira 4, o Ministério da Saúde local reportou 94 mortos em um dia. Desde o início da ofensiva, em outubro de 2023, foram registradas 60.933 mortes, das quais 180 estão relacionadas à fome. Entre essas vítimas, 93 eram crianças.
Além da fome, o acesso à água também se tornou uma luta diária para os palestinos, diante das severas restrições impostas por Israel. Segundo relatório da OCHA, 82% das estruturas de abastecimento, saneamento e higiene estão localizadas em zonas militares israelenses ou em áreas sob ordens de expulsão. Perto de 89% dessas estruturas foram destruídas ou sofreram danos parciais, de acordo com dados de fevereiro de 2025. Atualmente, 96% dos lares enfrentam insegurança hídrica, e 90% reportam que o acesso à água piorou desde julho.
Em 1º de agosto, a Human Rights Watch denunciou o assassinato sistemático de palestinos que buscavam alimentos pelas Forças de Defesa de Israel, classificando os centros de distribuição da GHF como “armadilhas mortais”. A entidade conclamou os Estados nacionais a pressionarem as autoridades israelenses para que interrompam imediatamente o uso de força letal contra civis e suspendam as restrições à entrada de ajuda humanitária.
Para a Human Rights Watch, Israel comete atos de genocídio ao submeter a população palestina à privação de água e comida. “Assim que os Estados tomam conhecimento de um risco grave de genocídio, eles têm o dever positivo de tomar todas as medidas razoáveis para evitá-lo, o que pode incluir embargos de armas, restrições comerciais e sanções”, observa Heidi Matthews, professora de Direito Penal Internacional da Universidade de York. Mesmo diante de abundantes registros – tanto testemunhais quanto visuais – do uso da fome como arma de guerra por parte de Israel, a pressão internacional tem se limitado a vagas promessas de reconhecimento do Estado palestino. Evidentemente, esta é uma etapa necessária, mas insuficiente, observa Matthews: “As nações ocidentais não parecem dispostas a mudar sua política externa de longa data em relação a Israel”.
O premier pretende ordenar a ocupação total do território, segundo relatos na mídia israelense
Analista especializado em Oriente Médio, o holandês-palestino Mouin Rabbani avalia que os recentes esforços pelo reconhecimento da Palestina correm o risco de se tornar “gestos simbólicos”, caso não sejam acompanhados de “ações concretas para modificar a realidade no território”. Já Matthews destaca outro aspecto problemático: condicionar a iniciativa ao comportamento de Israel, o que contraria princípios do Direito Internacional. “O exemplo do Reino Unido é especialmente grave, pois atrela esse reconhecimento à continuidade da violência contra o povo palestino”, observa a professora.
Se a promessa for cumprida, França, Reino Unido e Canadá serão os primeiros países do G7 a reconhecer o Estado palestino. O gesto tem peso político considerável, mas os demais integrantes do grupo – EUA, Alemanha, Itália e Japão – ainda não sinalizaram qualquer intenção de seguir o mesmo caminho. Enquanto cresce a pressão internacional, o governo israelense parece mais determinado a acelerar sua ofensiva na Faixa de Gaza. No domingo 3, o jornalista israelense Barak Ravid, da CNN, revelou em seu blog que Benjamin Netanyahu demonstrava interesse em ampliar as operações militares no enclave. No dia seguinte, vários veículos noticiaram que o premier pretende ocupar todo o território – atualmente, as forças israelenses estão presentes em 12,7% da região.
O governo de Donald Trump vive um impasse. De um lado, afirma atuar pela negociação de um cessar-fogo, por meio de seu enviado Steve Witkoff, e declara a intenção de ampliar o envio de ajuda humanitária aos palestinos. De outro, mantém firme o apoio militar a Tel-Aviv, seja pelo fornecimento contínuo de armamentos, seja pela cooperação direta com o exército israelense. Mais recentemente, o coronel da reserva Anthony Aguilar, ex-funcionário da GHF, denunciou crimes cometidos no sistema de distribuição de alimentos, com o aval das forças israelenses e a conivência de autoridades norte-americanas.
Além das divisões internas no G7, Trump enfrenta o crescimento da rejeição popular à ofensiva israelense. Segundo pesquisa Gallup realizada entre 7 e 21 de julho, 60% dos norte-americanos desaprovam as ações militares em Gaza, enquanto 32% as apoiam – uma inversão do cenário de novembro de 2023, quando a taxa de aprovação era de 50%. Já um levantamento do Pew Research Center, também de julho, mostra que a opinião pública em 20 dos 24 países pesquisados é majoritariamente desfavorável a Israel. Na França e no Reino Unido, seis em cada dez entrevistados criticam a ofensiva. No Brasil, o índice chega a 58%. •
Publicado na edição n° 1374 de CartaCapital, em 13 de agosto de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Sem freios’
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