Mundo
Seita suicida
Kevin McCarthy é a enésima vítima da subserviência do Partido Republicano a Trump


Mais de 11 anos atrás, antes de Donald Trump emergir do lodo primordial do pântano febril da extrema-direita, antes da insurreição abortada de 6 de janeiro e antes de o último espasmo do extremismo republicano derrubar o presidente da Câmara, Kevin McCarthy, dois renomados cientistas políticos, Thomas Mann e Norman Ornstein, identificaram a essência da política cada vez mais disfuncional dos EUA: o Partido Republicano. Para eles, o Grande e Velho Partido (GOP, na sigla em inglês) havia se tornado um “insurgente atípico”, que era “ideologicamente radical, desdenhando os compromissos e indiferente à legitimidade de sua oposição política”.
O enfant terrible piorou de forma inimaginável. O Partido Republicano hoje é menos uma agremiação e mais uma massa incipiente de lamentações culturais, teorias da conspiração e slogans políticos de mínimo denominador comum. Apesar de toda a sua toxicidade, Trump é um sintoma da descida à loucura do Partido Republicano durante décadas. Legislar não é visto como uma ferramenta para melhorar a situação da população, e sim como uma oportunidade para zombar dos democratas e agir de acordo com as afrontas da base do partido. Mas a indiferença republicana em relação a governar é, talvez, a menor das patologias do GOP. Ao apoiarem servilmente Trump e seus seguidores do Maga, o Make America Great Again, eles fortaleceram um movimento político que cada vez mais testa os limites da experiência democrática estadunidense.
A trajetória política de McCarthy conta essa triste história. Depois do 6 de janeiro, McCarthy, que, juntamente com seus colegas políticos, foi forçado a se esconder dos rebeldes invasores, voltou-se contra o homem responsável pela violência do dia. Em particular, disse a colegas republicanos: “Estou farto desse cara”. Mas, poucas semanas depois, viajou para o refúgio palaciano do ex-presidente no sul da Flórida e, de joelhos, jurou lealdade ao deus alaranjado do Partido Republicano. Ele tentou bloquear um comitê bipartidário do Congresso para investigar o 6 de janeiro e aliou-se a teóricos da conspiração que continuaram a espalhar mentiras sobre as eleições de 2020. No início deste ano, cedeu aos extremistas republicanos e abriu um processo de impeachment contra Joe Biden, embora não haja evidências de que o presidente tenha cometido qualquer crime passível de impedimento.
McCarthy, tal como inúmeros suplicantes republicanos nos últimos oito anos, percebeu que suas aspirações políticas estavam diretamente ligadas à sua vontade de apoiar Trump e as forças extremistas no partido que se uniram ao seu redor. Numa história tão antiga quanto o tempo, ele fez um acordo com o diabo, apenas para ser queimado pelas forças políticas que fortaleceu. O domínio de Trump sobre o Partido Republicano é tão completo que beira o patológico. Desde março, ele foi indiciado quatro vezes e acusado de 91 crimes diferentes. No entanto, seus números nas pesquisas entre os republicanos melhoraram drasticamente. Ele tem uma vantagem de mais de 45 pontos na corrida pela indicação do partido.
Simplesmente, não há futuro no Partido Republicano para quem se recuse a prostrar-se diante de Trump. Liz Cheney foi a republicana mais veemente e apaixonada ao se manifestar contra ele depois do 6 de janeiro. Sua recompensa: McCarthy planejou sua remoção da liderança da legenda. Então, em 2022, um republicano do Maga desafiou Cheney nas primárias republicanas e a derrotou por quase 40 pontos. Outro apóstata republicano, o ex-candidato presidencial e atual senador por Utah, Mitt Romney, que votou duas vezes pela condenação de Trump nos seus julgamentos de impeachment, anunciou recentemente que não se candidataria à reeleição.
Em entrevistas para a Atlantic, ele contou como, “em público”, senadores republicanos “desempenharam seu papel de leais a Trump, muitas vezes contorcendo-se retoricamente para defender o comportamento mais indefensável do ex-presidente. Mas, em particular, ridicularizaram a ignorância dele, reviraram os olhos diante de suas trapalhadas e fizeram observações incisivas sobre sua psique infantil e distorcida”.
O presidente da Câmara dos EUA caiu com o apoio de radicais de sua própria legenda
Tal como outros republicanos de princípios, Romney está preferindo afastar-se, e é difícil culpá-lo. Suas críticas a Trump levaram a ameaças de morte, e hoje ele gasta cerca de 5 mil dólares por dia em segurança privada. Resultado: as fileiras do Partido Republicano estão agora cada vez mais ocupadas por pessoas com reservatórios insondáveis de ambição e armários vazios de integridade. Os incentivos políticos na legenda seguem numa direção singular – para a extrema-direita. Se existe algum vislumbre de esperança, é este: para todos os eleitores republicanos que amam Trump, existe um grupo maior e mobilizado de eleitores que o detestam.
Na verdade, o que talvez seja mais surpreendente em Trump é a natureza estática do seu apoio. De fato, se compararmos seus índices de aprovação em fevereiro de 2020 – antes de a pandemia de Covid devastar o país – com os de novembro de 2020, quando ele concorreu à reeleição, permaneceram praticamente inalterados. Desde que deixou o cargo, seus números de aprovação também são quase os mesmos. Os americanos, em geral, já se decidiram sobre Trump – e o veredicto é: “Não gostamos dele”.
As últimas três eleições nos EUA provam isso. No que foi amplamente visto como uma rejeição a Trump, nas eleições intermediárias de 2018, os democratas conquistaram mais de 40 assentos e o controle da Câmara dos Deputados. Em 2020, ele perdeu a reeleição por pelo menos 7 milhões de votos para Biden (4 milhões a mais do que em sua derrota no voto popular para Hillary Clinton em 2016). Nas eleições de meio de mandato de 2022, os democratas tiveram um desempenho drasticamente superior, conquistando um assento no Senado e perdendo por pouco na Câmara dos Deputados. Neste ano, em dezenas de eleições especiais, os democratas estão com desempenho superior em impressionantes 11 pontos.
É claro que as eleições são complicadas e não há garantia de que o impopular Biden saia vitorioso em novembro do próximo ano. Mas considere suas péssimas pesquisas atuais com cautela. Uma coisa é querer um candidato democrata diferente, como é o caso de muitos democratas, mas eleição é questão de escolhas. O fato de a opção provável dos eleitores em 2024 ser Biden, ou um adversário profundamente instável que poderia ser um criminoso com diversas condenações, é uma forma de estreitar o foco. Mesmo que Trump perca, porém, o problema do Partido Republicano continuará existindo muito depois de ele ter deixado a cena política. •
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.
Publicado na edição n° 1281 de CartaCapital, em 18 de outubro de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Seita suicida’
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