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Sede de vingança

John Bolton, ex-conselheiro de Segurança Nacional, é o enésimo crítico de Trump perseguido pelo governo

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Desabafo. “Esta é uma retaliação direta do presidente contra todos aqueles que ousaram discordar dele”, resume Bolton – Imagem: Alex Kent/AFP
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O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, nunca escondeu suas aspirações autoritárias. Deixou claro que, ao retornar ao poder, caçaria cada um de seus adversários políticos – mesmo que, para isso, precisasse instaurar um Estado policial em seu governo. E vem cumprindo a promessa. Desde que ­rea­ssumiu a Casa Branca, em janeiro deste ano, o líder republicano inaugurou um novo e perigoso capítulo de perseguição institucional no país. Tem usado o aparato jurídico federal como instrumento de retaliação contra críticos, projetando sobre eles a sombra de um regime para o qual a democracia é obstáculo, não fundamento.

Em menos de um mês, entre setembro e outubro, três opositores de alto escalão foram formalmente indiciados: John Bolton, ex-assessor de Segurança Nacional; James Comey, ex-diretor do FBI; e Letitia James, procuradora-geral de Nova York. Outros nomes de peso também estão na mira do presidente: o investidor e filantropo húngaro ­George Soros, tradicional doador de campanhas democratas; Lisa Cook, conselheira do Federal Reserve, o Banco Central dos EUA; o senador democrata Adam Schiff, por seu papel nos processos de impeachment do primeiro mandato; e Hillary Clinton, ex-secretária de Estado no governo Obama. Todos, em algum momento, enfrentaram Trump, seja ao criticá-lo publicamente, liderar investigações contra ele ou sustentar políticas contrárias aos seus interesses.

Em retaliação, todos passaram a enfrentar constrangimentos públicos, medidas que servem tanto para punir quanto para ameaçar. Elas vão desde a revogação de proteção e segurança pessoal até a abertura de processos administrativos e investigações questionáveis, muitas vezes conduzidas por promotores nomeados pelo atual governo. No caso de Comey, por exemplo, o processo é liderado por Lindsey Halligan, ex-advogada pessoal de Trump e nomea­da procuradora interna dos EUA, ainda sem aprovação do Senado. Ela substituiu o promotor Erik Siebert, que se recusou a apresentar a denúncia contra o ex-diretor do FBI devido à flagrante ausência de provas.

Comey, que chefiou a investigação federal sobre a interferência russa nas eleições de 2016, foi acusado de prestar falso testemunho ao Congresso e de tentar obstruir um procedimento legislativo durante um depoimento ao Comitê Judiciário do Senado, em 2020. No X, Trump comemorou a denúncia e descreveu o ex-diretor do FBI como “um dos piores seres humanos aos quais este país já foi exposto”. Comey também reagiu nas redes sociais: “Minha família e eu sabemos há anos que enfrentar Donald Trump tem seus custos, mas não conseguimos imaginar viver de outra forma. Alguém que eu amo muito disse recentemente que o medo é a ferramenta de um tirano, e ela está certa. Mas eu não tenho medo, e espero que você também não tenha”.

Ex-aliado, Bolton responde a 18 acusações criminais por reter e compartilhar dados confidenciais

Em 9 de outubro, a procuradora-geral de Nova York, Letitia James, responsável por investigações de corrupção contra Trump, foi formalmente acusada de fraude bancária e declarações falsas. Em nota, ela classificou as denúncias como exemplo de lawfare, o uso do sistema judicial como arma política. “Ele está forçando as agências federais a agirem em seu nome. A Justiça não deve ser instrumento de vingança pessoal, isso é perigoso para a democracia e para o Estado de Direito. As acusações são infundadas, e as próprias declarações públicas do presidente deixam claro que seu único objetivo é a retaliação política, a qualquer custo. Não estou com medo. Estou determinada. Trump quer me intimidar, mas não vai conseguir. Continuarei fazendo meu trabalho em nome do povo de Nova York.” Em publicação na Truth Social, o republicano rebateu: “Ela é apenas mais uma entre os que tentam derrubar minha administração. Não terão sucesso”.

John Bolton, que foi conselheiro de Segurança Nacional no primeiro mandato de Trump, entre 2018 e 2019, foi formalmente acusado, em 16 de outubro, por 18 crimes relacionados ao manuseio e envio ilegal de documentos sigilosos por e-mail. “Sou vítima de uma perseguição política que visa silenciar qualquer voz dissidente”, escreveu no X. “Esta é uma retaliação direta do presidente contra aqueles que ousaram discordar dele.” Já Trump, que em 2023 foi acusado de manter documentos de defesa nacional após deixar a Casa Branca, afirmou que Bolton colocou “segredos importantes nas mãos erradas”, e concluiu: “Isto não será tolerado”.

Não é tudo. Segundo o New York Times, Trump agora exige que o Departamento de Justiça o indenize em 230 milhões de dólares pelas investigações federais que enfrentou nos últimos anos. Em recente conversa com jornalistas no Salão Oval, ele ironizou o caso: “Tenho um processo que estava indo muito bem. Quando me tornei presidente, pensei: vou me processar. Não sei como resolver isso, então digo: me deem X dólares”.

De acordo com o jornal, um eventual­ acordo pode ser aprovado por Todd Blanche, procurador-geral-adjunto e ex-advogado de Trump. Mas as ruas, tomadas por milhões no sábado 18, durante os atos “No Kings” (“Não temos reis”), mostraram que, diante de um poder absoluto, ainda há resistência. Trump classificou os protestos como um “gesto de ódio à América” e publicou um vídeo despejando fezes sobre manifestantes. Enquanto mira novos alvos, ele demonstra não reconhecer uma oposição capaz de detê-lo, mesmo diante daqueles que se recusam a se curvar. •

Publicado na edição n° 1385 de CartaCapital, em 29 de outubro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Sede de vingança’

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