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Sangue nos olhos

A condenação de Donald Trump atiça a fúria de sua base eleitoral

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Inversão de valores. Para os eleitores republicanos, Trump é perseguido pelo sistema e a democracia dos Estados Unidos está ameaçada – Imagem: Justin Lane/AFP e Giorgio Viera/AFP
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As postagens são ameaçadoras. “Escolha um lado, ou VOCÊ será o próximo”, escreveu o apresentador conservador Dan ­Bongino na plataforma Truth Social, depois das 34 condenações criminais de Donald Trump. As respostas foram ainda mais.

“Dan, falando sério”, escreveu um usuá­rio em resposta a Bongino. “Não vejo saída para toda essa confusão sem derramamento de sangue. Quando se pode fraudar uma eleição e depois usar o governo e os tribunais como armas contra um ex-presidente, qual é a alternativa? Tenho quase 70 anos e prefiro morrer a viver na tirania.”

Esta é uma reação comum de muitos eleitores de direita nos Estados Unidos ao veredicto do ex-presidente. Recorrem a um “mundo do espelho” no qual Trump é um altruísta, mártir das poderosas forças estatais, e Joe Biden é o autocrata perigoso que controla o sistema judicial como um brinquedo pessoal, uma ameaça à democracia norte-americana. Apelos por vingança, retaliação e violência encheram a internet de direita assim que saiu a condenação, na sexta-feira 31, de Trump no caso da compra do silêncio da ex-atriz pornô Stormy Daniels, todos baseados na ideia de que o julgamento foi uma farsa concebida para interferir nas eleições de 2024. Alguns postaram ­online uma defesa explícita de enforcamentos, execuções e guerras civis.

Apoiadores do republicano defendem até uma guerra civil para “salvar” o país

Neste caso, Trump foi acusado de falsificar documentos relacionados a um pagamento feito à atriz pornô para manter em sigilo um suposto caso dos dois durante as eleições de 2016, uma forma de interferência eleitoral de um homem cuja plataforma ultimamente consiste, sobretudo, em acusar os outros de interferência eleitoral. O veredicto foi seguido por uma reação negativa dos seus seguidores, que durante anos gritaram para prender os adversários políticos de Trump, entre eles Hillary Clinton.

Na esquerda, o clima era de pura comemoração, um breve interlúdio de alegria por Trump ser finalmente responsabilizado por suas ações. Mas havia uma corrente de preocupação entre alguns liberais, que viam como esses crimes poderiam captar apoio para ele. À direita, na realidade alternativa criada por e para Trump e seus apoiadores, as condenações são um sinal tanto de desgraça quanto de dogma, a prova de que uma facção corrupta dirige o governo de Biden, mas que pode ser expulsa pelos fiéis de Trump, como eles próprios.

Os trumpistas no Congresso querem usar os cofres do governo federal para enviar uma mensagem a Biden de que o veredicto ultrapassou os limites. Segundo eles, a decisão do júri “transformou nosso sistema judicial num porrete político”. Alguns senadores republicanos prometeram não cooperar com as prioridades ou os candidatos democratas e politizar efetivamente o governo em recompensa pelo que consideram uma politização da Justiça. Eles repetiram uma afirmação que o próprio Trump fez a seus seguidores, de que seus adversários políticos, sobretudo Biden, são uma ameaça à democracia, uma reformulação do modo como Biden e os democratas costumam retratar Trump. Para seus seguidores mais fervorosos, o que está em jogo nas eleições de 2024 é existencial, a ideia de que ele possa perder um motivo para fortes discursos e ameaças.

Prelúdio. Caso Trump perca as eleições, há risco de o país enfrentar uma sublevação mais violenta do que a invasão do Capitólio – Imagem: Brent Stirton/Getty Images/AFP

Para alguns, as condenações constituem mais uma razão para resolver o problema por conta própria, num momento em que há crescente apoio ao uso da violência para atingir objetivos políticos. As acusações contra Trump alimentaram esse apoio, segundo pesquisas. Alguns meios de comunicação e comentaristas de direita, como Bongino e o Gateway Pundit, exibiram bandeiras de ponta-cabeça nas redes sociais, um sinal de perturbação e um símbolo entre os apoiadores de Trump que recentemente virou notícia quando uma delas voou para a casa do juiz da Suprema Corte Samuel Alito após a insurreição.

Os termos “república de bananas” e “tribunal canguru” circularam, assim como memes a comparar Biden a líderes nazistas ou fascistas. Os canais do Telegram se iluminaram com postagens sobre como o fim dos EUA se concretiza, a menos que Trump ganhe novamente em novembro. “Se prendermos Trump, nos livrarmos do Maga, acabarmos com o colégio eleitoral, proibirmos a identificação dos eleitores, censurarmos a liberdade de expressão, salvaremos a democracia”, descreve um meme em um canal do QAnon no Telegram que mostra Biden de uniforme nazista com um bigode à Hitler.

Tucker Carlson, expoente da mídia de direita, tornou-se apocalíptico: “Importe o Terceiro Mundo, torne-se o Terceiro Mundo. É o que acabamos de ver. Isso não impedirá Trump. Ele vencerá as eleições, se não for morto primeiro. Mas marca o fim do sistema de justiça mais justo do mundo. Qualquer um que defenda esse veredicto é um perigo para você e sua família”.

Nas redes sociais direitistas, Biden é descrito como um autocrata e comparado a Hitler

Os apoiadores de Trump também abriram suas carteiras e enviaram um “recorde” de 34,8 milhões de dólares em pequenas doações para a campanha, afirmou a equipe de Trump. A enorme quantia veio depois de Trump declarar-se um “prisioneiro político” (ele não está preso) e afirmar que a justiça está “morta” nos EUA, numa desesperada campanha para angariar fundos. “O objetivo doentio e distorcido deles é simples: perverter tanto o sistema judicial contra mim, que apoiadores orgulhosos como VOCÊ CUSPIRÃO quando ouvirem meu nome”, escreveu a campanha de Trump. “MAS ISSO NUNCA VAI ACONTECER! AGORA É HORA DE EU E VOCÊ JOGARMOS DE VOLTA EM SUAS CARAS CORRUPTAS!”

O verdadeiro veredicto, escreveu Trump no Truth Social, virá em 5 de novembro. Postagens que chamam essa data de um novo “dia da independência” e comparam 2024 a 1776 – uma revolução não contra os britânicos, mas entre norte-americanos pelo controle do país – espalharam-se amplamente. A desinformação e os rumores também se espalharam, com o potencial de que estes possam levar a novos atos de republicanos para vingar seu líder.

Numa declaração que viralizou, apoiadores dizem que não está claro quais crimes Trump cometeu (as evidências de falsificação de documentos estão listadas em detalhe na acusação e foram analisadas uma a uma pela mídia). Outras postagens afirmam que o juiz deu instruções incorretas ao júri antes das deliberações, que uma verificação de fatos da Associated Press considerou falsas. Sugestões de que a condenação foi uma “operação” ou uma “operação psicológica” – ou seja, uma manipulação planejada, um refrão comum na extrema-direita sempre que algo importante acontece – igualmente se disseminaram.

A conversa logo se tornou o que o grupo Maga deveria fazer para defender Trump e sobre como os fãs do veredicto, e os democratas em geral, se arrependeriam de ter procurado a responsabilização dele na Justiça. “Este será o maior tiro pela culatra político da história dos Estados Unidos”, postou a conta conservadora ­Catturd no Truth Social. “Estou sentindo uma tremenda mudança sísmica no ar.”

Fogueira. Bannon continua a atiçar o ressentimento. Biden não passa de um tirano, dizem os trumpistas – Imagem: Biden/Harris 2024 e Gage Skidmore

Kash Patel, ex-funcionário e aliado do governo Trump, sugeriu um caminho a seguir: o Congresso deveria requisitar os registros bancários da filha do juiz Juan Merchan, disse ele. A filha tornou-se um alvo frequente durante todo o julgamento, por ter trabalhado como consultora democrata e arrecadado fundos para políticos da legenda. O senador de Ohio J.D. Vance pediu uma investigação criminal do magistrado, e potencialmente de sua filha, que segundo ele é uma “beneficiária óbvia das decisões tendenciosas de Merchan”.

Patel disse que o promotor Alvin ­Bragg deveria ser intimado a apresentar quaisquer documentos relacionados a reuniões com o governo Biden. “Caso você precise de um gancho jurisdicional, o escritório de Bragg recebe fundos federais do Departamento de Justiça para ‘administrar a justiça’, vá em frente”, escreveu. Megyn Kelly disse que Bragg deveria ser cassado, sem apresentar uma razão que justificasse o pedido.

Alguns aliados de Trump procuraram projetar calma em meio à virulência, dizendo que sabiam que o veredicto seria esse porque o processo tinha sido fraudado, e que os apoiadores precisam manter o foco na vitória em novembro. ­Steve Bannon, que aguarda algum tempo na prisão por desacato criminal, disse imediatamente após a divulgação do veredicto que este “não prejudicaria em nada” o presidente Trump. “É hora de se recompor e dizer sim, vimos o que aconteceu. Vimos como eles conduzem o jogo nesse processo tortuoso. Mas você tem que dizer: ‘Ei, estou mais determinado do que nunca a endireitar as coisas’.” •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

Publicado na edição n° 1314 de CartaCapital, em 12 de junho de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Sangue nos olhos’

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