Mundo
Ruas de sangue
Em Juliaca, maior cidade do departamento de Puno, o impasse político do país ganha contornos brutais


Pilhas de lixo a queimar e paredes furadas de balas. Tropas entrincheiradas no aeroporto com fuzis AK-47 e escudos antimotim, à espera de uma trégua que não tem data para acontecer. O prefeito preside um tribunal atrás das janelas quebradas da prefeitura vandalizada. “Sinto que minha cidade está se destruindo. Está manchada de sangue. Está ferida”, lamentou Oscar Cáceres, enquanto manifestantes furiosos se reuniam em frente à sede municipal para exigir mudança política e justiça para os 17 mortos durante o dia de violência mais mortal nos dois meses de revolta contra o governo do Peru.
A agitação política no quarto maior país da América do Sul deu à cidade andina de Juliaca, a maior do departamento de Puno, no sul do país, o clima e a aparência de uma zona de guerra. Perto do aeroporto internacional pulverizado, palco de confrontos violentos entre manifestantes e forças de segurança em 9 de janeiro, nos quais 17 morreram, um grafiteiro deixou um recado para as autoridades quase invisíveis da cidade: “O povo manda”.
Após algum tempo em Juliaca, é impossível discordar. Durante três dias na cidade conflituosa, The Observer viu apenas uma vez policiais ou militares fora do centro de comando de emergência instalado no aeroporto internacional, que leva o nome de Manco Cápac, fundador da civilização inca. Em vez disso, as ruas com barricadas foram tomadas por grupos de rebeldes antigovernistas que estão em revolta declarada contra a presidente Dina Boluarte desde o início de dezembro, quando seu antecessor, Pedro Castillo, foi destituído do poder e preso após supostamente tentar um golpe. “Ficaremos aqui até essa senhora renunciar”, gritou uma opositora sobre Boluarte, à frente do bloqueio feito com pneus e caixas de papelão incendiados durante o último dia de protestos.
Em meio ao clima e aparência de zona de guerra, o grafite lembra: “O povo manda”
Enquanto a mulher falava, um líder do protesto, que se recusou a dar seu nome, chegou para expressar sua fúria pelo fato de tantos manifestantes terem sido mortos a tiros “como animais” pelas forças de segurança, desde o início do levante. Até agora, ao menos 59 peruanos foram mortos, entre eles um policial. “Meu amigo, foi aqui em Puno que nasceu o império Inca e é isso que nos dá coragem. Temos o sangue de Pedro Vilcapaza e o sangue de Tupac Amaru”, afirmou o homem sobre os dois rebeldes indígenas do século XVIII. “Devemos continuar lutando… e continuaremos lutando”, acrescentou, antes de pedir que a Rússia ou a União Europeia enviem armas aos rebeldes desarmados.
Do lado de fora do aeroporto desativado, cuja entrada era protegida por dez policiais, sete cones de trânsito laranja, quatro painéis de compensado e dois cães sem dono de olhos tristes, o general do exército encarregado de retomar o controle de Juliaca expressou exasperação com o “estilhaçamento” desta cidade de 300 mil habitantes. Manuel Alarcón Elera, chefe da quarta brigada de montanha, disse que seus soldados receberam a tarefa de limpar as estradas bloqueadas nos planaltos ao redor nos próximos dias. Diante da pergunta sobre quando a normalidade poderia retornar, o general ficou perplexo: “É uma pergunta realmente complicada. Não acredito que haja uma resposta para ela”.
Uma solução para a crise política do Peru parece igualmente vaga, dois meses depois de seu início, em 7 de dezembro, quando a dramática queda de Castillo levou sua vice-presidente e ex-aliada de esquerda, Boluarte, a tomar o poder. Os rebeldes camponeses, que bloquearam grandes trechos dos Andes, fizeram quatro reivindicações principais para desmontar suas barreiras: a renúncia de Boluarte, que dizem ter sido cooptada pela direita, a dissolução do Congresso, novas eleições e a reforma da Constituição do Peru, de 1993, promulgada durante a presidência autoritária de dez anos de Alberto Fujimori e acusada de aprofundar a desigualdade. Alguns, embora não todos, também pedem que Castillo, ex-sindicalista eleito em 2021 sob a promessa de governar pelos pobres rurais do Peru, mas enfrentou uma série de acusações de corrupção, seja libertado e devolvido ao poder.
A raiva rural profundamente enraizada pela negligência das elites políticas predominantemente brancas do Peru, baseadas em Lima, foi exacerbada pelo assassinato dos manifestantes, a maioria em terras agrícolas, como Puno, onde os lucros da mineração de ouro e cobre não conseguiram reduzir a pobreza.
Os nomes de algumas das vítimas foram colados na frente da igreja barroca de Juliaca, próximo da prefeitura, que os manifestantes atacaram 24 horas após a chacina no aeroporto, em 9 de janeiro. “As ruas estão manchadas de sangue”, gritou a enfermeira Carolina Machaca Mamani, enquanto visitava o túmulo de um colega, Marco Antonio Samillán Sanga, na periferia dilapidada da cidade. Sanga, médico estagiário de 30 anos, estava no aeroporto com um grupo de médicos voluntários, quando centenas de manifestantes tentaram tomar o controle da pista para impedir a chegada de reforços. Testemunhas dizem que ele foi baleado no coração pela polícia, enquanto atendia um menino que tinha inalado gás lacrimogêneo.
As balas arrancaram pedaços do tamanho de um punho das paredes da Avenida Independência, repleta de lixo, que passa ao lado da pista e onde os manifestantes derrubaram a cerca do perímetro do aeroporto antes que as forças de segurança os repelissem com gás lacrimogêneo e munição real. Em um cruzamento próximo, uma placa gigante pendurada em uma ponte diz: “Renuncie Dina, sua assassina”.
“Seria muito triste para todos se acabássemos numa guerra civil. Haveria um massacre”, teme o prefeito Oscar Cáceres
O governo peruano, sem oferecer provas, classificou os manifestantes como bandos organizados de terroristas e vândalos, cuja insurgência é apoiada por narcotraficantes, máfias de garimpeiros ilegais e esquerdistas bolivianos. Vozes de direita, também sem provas, alegam que a insurreição faz parte de uma conspiração financiada por Cuba e Venezuela. Os manifestantes rejeitam, no entanto, essas representações e afirmam que as autoridades tentam silenciar com armas seus apelos legítimos por mudanças políticas. No mês passado, a União Europeia lamentou o grande número de baixas nos protestos, que incluem um policial de Juliaca encontrado queimado até a morte, e condenou os “atos generalizados de violência, bem como o uso desproporcional de força pelas equipes de segurança”.
“Sinto uma mistura de dor, raiva e impotência… a vida não vale nada”, disse a estudante Daisy Milagros, 22 anos, enquanto colava nos portões da igreja de Juliaca um cartaz a denunciar os assassinatos. “A ordem é atirar. É proibido pensar”, dizia o slogan do pôster, emoldurado por desenhos de dois policiais zumbis a lançar bombas.
A violência trouxe de volta lembranças dolorosas da guerra de 12 anos travada pelos guerrilheiros comunistas do Sendero Luminoso, entre 1980 e 1992, quando cerca de 70 mil peruanos perderam suas vidas e centenas de milhares fugiram para as cidades para escapar do derramamento de sangue nos Andes. O irmão de Samillán Sanga, Raúl Constantino, disse que a última vez que viu Juliaca em tal estado de turbulência foi no início dos anos 1990, durante os últimos dias do que a escritora Alma Guillermoprieto chamou de anos de “raiva e assassinato insano” no Peru. “Quando eu tinha 9 anos, era parecido”, disse. “Havia bombas e bloqueios. Não havia comida, havia filas em todos os lugares para comprar querosene. Havia toque de recolher à noite, para que você não pudesse sair de casa. Foi muito triste.”
Cáceres disse nunca ter “visto tanto caos e conflito”, e comparou o fechamento da cidade pelos manifestantes a uma greve de fome, que matava lentamente o próprio município que deveria ajudar. “É tão difícil de entender”, disse o prefeito. Segundo ele, Juliaca havia esgotado o cloro necessário para purificar seu abastecimento de água, por causa do fechamento do aeroporto para voos comerciais. As dezenas de bloqueios de estradas que cercam a cidade significam também escassez de alimentos, gasolina e gás.
Os manifestantes pedem a renúncia de Boluarte, a destituição do Congresso e novas eleições. Nem todos querem Castillo de volta – Imagem: Eva Gusson/Congresso Nacional do Peru, Carla Patiño/Presidência do Peru e Cris Bouroncle/AFP
Cáceres afirma entender a indignação rural com a “escandalosa” repressão no aeroporto e com o establishment político de Lima, que falhou em resolver os antigos problemas sociais que assolam a região. Ele esperava que Boluarte, a quem declarou persona non grata, renunciasse, para evitar o colapso econômico da cidade e mais derramamento de sangue. “Seria muito triste para todos se acabássemos numa guerra civil ou em luta uns contra os outros. Haveria um massacre. Não podemos aceitar isso.”
Boluarte recusa-se a renunciar, mas, no início de fevereiro, cedeu e aceitou que o Congresso profundamente impopular discutisse a antecipação das eleições para este ano, a fim de neutralizar a escalada da crise. Em uma ilustração da disfunção política que viu o Peru passar por sete presidentes nos últimos seis anos, o Congresso repetidamente evitou esses pedidos.
Em Juliaca, onde bandeiras negras de luto estão penduradas em lojas e casas fechadas, muitos temem que a pior violência ainda esteja por vir, enquanto as tropas se preparam para enfrentar os manifestantes que bloquearam quase cem estradas e rodovias no país, causando centenas de milhões de dólares em perdas econômicas. No dia em que a cidade se preparava para mais confrontos, a enfermeira voluntária Yulisa Luque Jacho saiu às ruas com um capacete branco de pedreiro e avental médico azul com seu nome, data de nascimento e tipo sanguíneo escritos na manga direita com uma caneta marcadora. “O governo envia o exército peruano e o povo vai reagir de alguma forma. Temo que algo muito violento aconteça por causa de toda a raiva”, disse a médica de 22 anos, enquanto sua equipe esperava para ser convocada para a linha de frente.
Trinta e seis horas depois, quando o toque de recolher noturno de Juliaca terminava, às 5 da manhã, The Observer viu a polícia nas ruas pela primeira vez em três dias. Ao virar a esquina do gabinete do prefeito, um grupo de policiais estava amontoado na escuridão ao lado de dois SUVs brancos. Pelas sombras do amanhecer, o corpo de um homem podia ser visto a seus pés. •
Tradução: Luiz Roberto M. Gonçalves.
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1246 DE CARTACAPITAL, EM 15 DE FEVEREIRO DE 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Ruas de sangue “
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