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“Ruanda estava psicologicamente destruída”, diz jornalista

Em 1994, o jornalista Alexander Kudascheff foi para Ruanda logo após o genocídio. Em entrevista, ele relata o que viu e fala sobre o papel da comunidade internacional, hoje e na época

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Desde janeiro de 2014, o jornalista Alexander Kudascheff, de 62 anos, é o editor-chefe da DW. Em sua carreira de repórter, ele esteve em várias regiões do mundo, e em 1994 cobriu o genocídio em Ruanda.

Vinte anos após uma das maiores catástrofes da história recente da humanidade, Kudascheff diz que encontrou em Ruanda um país maravilhoso e pessoas incrivelmente simpáticas, mesmo em meio à destruição e à vulnerabilidade. “Acredito que, na ocasião, compreendi aquilo como uma espécie de erupção arcaica. E, quando tudo passou, as pessoas voltaram a si.”

DW: Imediatamente após o genocídio em Ruanda, o senhor foi ao país cobrir o massacre para a Deutsche Welle. Quais foram as suas primeiras impressões?

Alexander Kudascheff: Pode parecer estranho, mas quando cheguei ao país de carro, vindo de Uganda, eu pensei: “Que país lindo”. Desci do carro e olhei para as curvas suaves das montanhas e para as florestas maravilhosas – e, de repente, eu estava olhando para o cano de uma arma: na minha frente estava uma criança-soldado, entre 9 e 11 anos de idade. Na época, eu ainda fumava e perguntei-me: “Como vou acalmar esse rapaz, com ou sem cigarro?”.

Então conversei com o menino. Ele me contou que o líder rebelde Paul Kagame [atual presidente de Ruanda] havia passado por ali alguns dias antes, e que agora ele estava incumbido de vigiar a área. Então o parabenizei por aquela tarefa honrosa, não ofereci nenhum cigarro e segui viagem.

DW: O senhor se deparou com outras crianças-soldados?

AK: Eu encontrei um número relativamente grande delas. Mas elas não estavam uniformizadas nem pertenciam de forma reconhecível a uma unidade. Elas simplesmente andavam de um lado para o outro, e eu desconfiei que algumas delas tivessem encontrado armas descartadas pelas milícias hutu, que haviam fugido. Na ocasião, Ruanda era um país fortemente armado, e muitas dessas armas estavam em mãos de crianças.

DW: O senhor viajou com um motorista ugandense em direção à capital Kigali. Como descreveria sua viagem?

AK: Partimos de Uganda em direção a Kigali. O único quarto de hotel que encontramos não tinha janela, água nem eletricidade. O preço único era um dólar. Dividi o quarto com o motorista. Viajamos por todo o país e atravessamos a fronteira até Goma, no leste da República Democrática do Congo.

Queríamos ver o que acontecera aos refugiados. Na ocasião, a maioria dos jornalistas internacionais não estava em Ruanda, mas na tragédia dos refugiados de Goma. Em Ruanda, o que interessava era a busca por assassinos escondidos da etnia hutu. Tentei entrevistar Paul Kagame, mas a resposta era sempre: “Amanhã, monsieur, amanhã”. Percorremos todo o país e até hoje não consigo deixar de pensar que Ruanda é tão incrivelmente linda e que achei as pessoas incrivelmente simpáticas, mesmo em meio à destruição e à vulnerabilidade.

DW: O senhor achou as pessoas simpáticas – é o que dizem muitos que viajam por Ruanda. Mesmo assim, durante o genocídio, muitos ruandeses foram capazes de cometer as piores atrocidades. Qual foi sua forma de lidar com isso?

AK: Provavelmente só encontramos as vítimas. Também não se pode entender como os alemães foram capazes de enviar 6 milhões de pessoas para a câmara de gás. Acredito que, na ocasião, compreendi aquilo como uma espécie de erupção arcaica. E, quando tudo passou, as pessoas voltaram a si.

O país estava psicologicamente destruído. Passávamos por incontáveis pilhas de crânios, ouvíamos as pessoas falando sobre como seus parentes haviam morrido ou sido massacrados. Não importa onde se estivesse, notava-se sempre que as pessoas queriam falar sobre o que vivenciaram. Dava para ver o que se passava com elas, uma mescla de alegria por sobreviver, vergonha por sobreviver e medo por sobreviver: “O que vai acontecer conosco?”.

DW: No entanto, durante o genocídio, os olhares do mundo não estavam voltados para Ruanda.

AK: Também como jornalista vem uma vergonha a posteriori, por se ter olhado tão pouco. Mas aqueles que detinham a responsabilidade na ocasião devem se envergonhar ainda mais: em primeira linha, as Nações Unidas, que, de forma patética, não fizeram nada. Isso vale também para os outros: para o Ocidente, para a Otan e principalmente para a Bélgica, a antiga potência colonial. Os belgas tinham uma relação de longa data com Ruanda, e também eles se perguntaram: “O que fizemos de errado? Por que não fomos capazes de dar um fim a esse genocídio, ou de ao menos atenuá-lo?”.

DW: Desde 2000, Paul Kagame é o presidente de Ruanda. Ele tentou alcançar a reconciliação – entre outras medidas, proibindo a definição por etnia. O que acha dessa política?

AK: Acho que o princípio de não ligar para a etnia, na verdade, é correto. Pois assim as pessoas se afastam das tradições racistas. Mas é possível ordenar tal coisa de cima para baixo? Os países socialistas sempre tentaram isso – sem sucesso, pois mal o socialismo caiu, eclodiram problemas nacionalistas por toda parte.

Minha avaliação de Kagame é bastante multifacetada e diferenciada. Economicamente, ele foi muito bem sucedido. Por outro lado, ele pertence a uma das etnias, e não é tão fácil para a outra etnia aceitar isso. Numa entrevista que fiz com ele há cinco ou seis anos, tive a impressão de que estava em paz consigo mesmo. Ele me passou a impressão de ser alguém que, provavelmente, suspeita que também comete erros, mas considera que o cerne de sua política está correto. Se isso está certo e se o dissenso étnico foi superado, provavelmente só se saberá na era depois de Kagame.

  • Autoria Dirke Köpp (ca)
  • Edição Augusto Valente

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