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Revanche em curso

Os armênios temem que a tomada de Nagorno-Karabakh pelo Azerbaijão seja só o começo

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Milhares de armênios foram expulsos do enclave – Imagem: Diego Herrera Carcedo/AFP
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As colmeias estavam numa terra de ninguém. Depois do confronto na fronteira próxima de sua aldeia, em abril, Geram dirigiu até os campos que sua família cultiva há décadas e onde mantém um pequeno apiário. Mas quando ele se aproximou ouviu tiros. Azerbaijanos disparavam contra ele de suas novas posições no topo das colinas ao redor. Ele voltou correndo para o carro e nunca mais retornou.

Outro morador local, Samvel ­Hyusunts, perdeu quase 70 hectares onde sua família cultivava trigo há décadas. “Eles tomam o que puderem”, diz ele, vestindo um terno empoeirado e boné, à beira da estrada por onde milhares de refugiados passaram de Karabakh para a Armênia. “A aldeia está sofrendo.”

Isso dificilmente seria notado se ocorresse em Nagorno-Karabakh, onde centenas foram mortos e dezenas de milhares fugiram enquanto o Azerbaijão prossegue na “reintegração” de seus territórios, no que muitos armênios consideram uma campanha de limpeza étnica. Mas Tegh está na Armênia propriamente dita e o incidente em abril, antes da guerra, indica como uma série de confrontos e invasões fronteiriças poderia pressagiar a próxima grande crise: um Azerbaijão revanchista encorajado pela vitória em Nagorno-Karabakh, agora de olho em um corredor terrestre para a Turquia ou mesmo anexar regiões inteiras do que os líderes guerreiros em Baku começaram a chamar de “Azerbaijão ocidental”. Na verdade, essa terra é a Armênia.

“Inicialmente, tratava-se de Karabakh e de melhorar sua posição de negociação e ameaçar a integridade territorial da Armênia para impedir seu apoio aos armênios de Karabakh”, disse Stefan Meister, chefe do Centro para a Ordem e Governança na Europa Oriental, Rússia e Ásia Central no Conselho Alemão de Relações Exteriores, com sede em Berlim. “Agora, como têm Karabakh sob controle, não precisam de qualquer acordo com o governo armênio. Eles poderiam simplesmente avançar e dizer: ‘OK, temos algum território e ocupamos um pouco mais. Ou apenas pegamos toda a região de Syunik’.” Meister acrescentou: “Faz parte da abordagem maximalista. Você está com fome e não vai parar de comer se ninguém impuser um limite”. Ele diz ter sugerido aos governos ocidentais para considerarem sanções a Baku.

As regiões de Syunik e Vayots Dzor entram na lista dos próximos alvos

Geram não tem dúvida de que outra guerra está por vir. Ele aponta para o topo das colinas próximas. “Você pode ver que os azerbaijanos agora têm posições ali, ali e ali. Quem é mais forte faz as regras. Temo que não seremos nós”, diz, diante da pequena loja de esquina na rua principal que atravessa Tegh, onde trabalha quase todos os dias. Ele traz um par de binóculos para mostrar a terra que sua família cultivava.

Depois de perder uma guerra em 2020, o primeiro-ministro armênio, ­Nikol Pashinyan, assinou um acordo de cessar-fogo com o Azerbaijão, mediado pela Rússia, que concede um corredor terrestre através da Armênia até Nakhchivan, enclave azerbaijano, e até a Turquia, o aliado mais próximo do Azerbaijão. O corredor, que passaria ao longo de uma ferrovia no sul da Armênia, seria policiado pelo FSB, principal serviço de guarda de fronteiras da Rússia. O Parlamento do Azerbaijão também realizou recentemente audiências sobre o Azerbaijão ocidental, um termo irredentista que o presidente do ­país, Ilham Aliyev, começou a usar em público e se refere particularmente à província de Syunik, onde se localiza Tegh.

Todos os moradores entendem que estão em perigo. Samvel, um pastor, pega sua longa vara e desenha um mapa num caminho enlameado. Aqui está o Azerbaijão e aqui está a Turquia, diz ele, e apenas a região de Syunik, na Armênia, onde estamos, fica entre eles. Samvel teve um rebanho de 500 ovelhas, segundo diz, mas perdeu suas pastagens perto da fronteira após a guerra de 2020 e foi forçado a vender todo o rebanho, exceto 30 cabeças. Ele conta ter perdido um olho nos combates na década de 1990, quando uma granada projetou estilhaços no lado esquerdo­ do seu rosto. A Armênia, acredita, tem sido dominada pelo Azerbaijão e por um círculo de aliados internacionais, entre os quais a Rússia. “Em breve, não haverá mais armênios”, acrescenta.


Não é garantido que o fim do governo de Nagorno-Karabakh conduza a novos combates entre o Azerbaijão e a Armênia. Como observou Benyamin Poghosyan, pesquisador sênior de política externa no Instituto de Pesquisa de Política Aplicada da Armênia, uma hipótese é que a fuga da população de Karabakh para a Armênia poderia, de forma um tanto contraintuitiva, remover um obstáculo para os dois países assinarem um tratado de paz. O próprio presidente do Parlamento armênio disse que os dois lados estão muito perto de uma “oportunidade histórica de assinar um acordo de paz”. Mas, disse Poghosyan, é mais provável o Azerbaijão, com a vitória de Karabakh, se sentir encorajado a exigir mais concessões, incluindo a rota de trânsito para Nakhchiven. “A destruição de Karabakh permitirá que o Azerbaijão concentre todas as suas forças, militares, diplomáticas e políticas, na direção da Armênia.”

Em longo prazo, afirma, o Azerbaijão pode estabelecer como objetivo ocupar parte das regiões de Syunik e Vayots Dzor, mas que provavelmente tomaria medidas mais incrementais em curto prazo para evitar uma reação internacional. “Eles podem penetrar em uma ou duas direções… e depois propor que a Armênia, se quiser que as tropas azerbaijanas regressem às posições anteriores à guerra, deverá aceitar a abertura de rotas ligando o Azerbaijão a Nakhchivan”. Essas rotas poderiam incluir um ataque em ­Jermuk, cidade montanhosa na região norte de Vayots Dzor, onde as tropas azerbaijanas tomaram posições nas montanhas com vista para o assentamento, ou em Kapan, capital da região de Syunik.

De Tegh, olhando para os campos que levam a Karabakh, Samvel, o pastor, diz que espera ver a paz, mas acredita que haverá guerra. “Antes era Karabakh”, diz, “mas agora toda Karabakh veio para cá. Temo que eles não estejam muito atrás.” •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

Publicado na edição n° 1280 de CartaCapital, em 11 de outubro de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Revanche em curso’

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