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Eleições no Chile dirão se a América Latina caminha para um novo ciclo progressista

Boric passou a dar ênfase ao tema segurança pública, espinhoso para os progressistas, enquanto Kast amenizou o estilo ‘bolsonarista’

Esperança. Boric registra uma pequena vantagem nas pesquisas contra o pinochetista Kast
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Desde o resultado que confirmou o segundo turno entre o jovem candidato da esquerda Gabriel Boric e o pinochetista José Antonio Kast, mais votado no primeiro turno, houve uma mudança nos discursos dos dois adversários. Boric passou a dar ênfase ao tema segurança pública, espinhoso para os progressistas, enquanto Kast amenizou o estilo “bolsonarista”: desistiu das propostas de extinguir o Ministério da Mulher e de retirar o país de organismos internacionais, entre eles a Comissão de Direitos Humanos da ONU. São recuos táticos na mais acirrada disputa presidencial dos últimos tempos. Cerca de 15 milhões de eleitores vão escolher o próximo presidente no domingo 19.

O jovem esquerdista leva uma pequena vantagem, segundo as mais recentes pesquisas, mas os articuladores da candidatura não pretendem dar sopa ao azar. “A coalizão Aprovo Dignidade articulou-se com partidos políticos, inclusive de centro, movimentos sociais e cidadãos independentes para promover a campanha mil portas por Boric. Diante da desvantagem de 100 mil votos no primeiro turno, esses segmentos saíram às ruas a fim de convencer novos votantes. Muitos dizem que o voto não é para a esquerda, mas contra o fascismo”, afirma a assessora parlamentar Karen Huertas. A meta, diz, é alcançar até o fim desta semana 1 milhão de casas. “Destacamos a nossa plataforma de aumento do salário mínimo, das aposentadorias, jornada de trabalho de 40 horas semanais e diminuição dos vencimentos dos presidentes e ministros.”

Além do esforço nos territórios, sobretudo em porções do norte e do sul, onde Boric foi pouco votado, a campanha agregou movimentos feministas, profissionais da educação, do setor de transportes e da Confederação de Trabalhadores do Cobre, com o compromisso de evitar a privatização da Codelco. A mineração é essencial para a cadeia produtiva nacional. “Essas adesões são relevantes em termos simbólicos, mas não influenciam o eleitorado decisivamente. Alguns sindicatos se somaram a Boric, não todos. A força laboral não está mais alinhada à esquerda. A realidade atual é de trabalhadores dispersos politicamente, com menos ideologia e mais urgências, algo alcançado pelo modelo pós-ditadura ao fragmentar tal classe e deixá-la sem um sentido de pertencimento”, analisa o jornalista Pablo Bustamante.

O esfacelamento social após décadas de neoliberalismo inscrito na Constituição explica o fato de Kast ter vencido em áreas pobres do país como A­raucanía e Tarapacá. O pinochetista segue o estilo dos populistas de direita latino-americanos. Apesar do curto período de campanha no segundo turno, três semanas, Kast preferiu viajar aos Estados Unidos para se reunir com representantes do Partido Republicano a percorrer o próprio país. “O motivo da viagem foi mostrar a liderança internacional de Kast, reunir empresários e dizer: aqui estamos. Apesar dos bilhões de dólares que saíram do Chile, especialmente pela instabilidade provocada pela constituinte, somos uma alternativa capaz de garantir a volta de capitais, investimentos e criação de empregos para diminuir a desigualdade”, alega Rojo Edwards, senador e coordenador da campanha do pinochetista.

O esquerdista Boric leva pequena vantagem nas pesquisas, mas o jogo não terminou

Internamente, Kast aproximou-se dos simpatizantes do Partido da Gente, ao enaltecer a defesa comum do ultraliberalismo e de regras migratórias restritivas durante evento online com Franco Parisi, terceiro colocado da eleição, com quase 1 milhão de votos. A sigla, promotora da chamada democracia digital, prometeu uma consulta a seus filiados para definir qual rumo tomaria, mas não efetivou tal processo. “Não há nenhuma instrução partidária. Somos um conjunto de independentes e deve haver liberdade para definir quem atrai mais cada eleitor. É uma decisão complicada pela incerteza e paixões envolvidas. Os meios tradicionais dizem uma coisa e as redes alternativas outra”, diz Maria Ojeda, que disputou uma vaga ao Senado. “Não acredito numa tendência de nossos votantes em direção a Kast, aqui há um engajamento maior em favor de Boric pelo tema cultural, mas as campanhas silenciosas são sempre as mais perigosas.”

Ministros e integrantes do governo de Sebastián Piñera apoiam Kast e reforçam a ideia de que o triunfo do pinochetista significaria o continuísmo da atual gestão, amplamente rejeitada pelos chilenos. Apesar da bem-sucedida campanha de vacinação, o desgastado presidente deixa o cargo em baixa e um difícil legado em áreas sensíveis como habitação e saúde. Segundo levantamento da Universidade Católica, 2,1 milhões de chilenos aguardam em filas de espera para realizar algum tipo de procedimento médico, ao passo que o déficit habitacional chega a 600 mil moradias, razão pela qual o número de acampamentos no país passa de 900. O apoio tende, no entanto, a atrapalhar o candidato da extrema-direita. “Para os seguidores de Kast, Piñera é débil, quase um esquerdista”, avalia Bustamante.

No segundo e último debate, realizado na segunda-feira 13, Boric viu-se obrigado a apresentar um atestado para provar que não usa drogas ou medicamentos controlados, uma das mentiras espalhadas pelos apoiadores de Kast. A polarização da disputa­ fez o termo “cancelamento ideológico” popularizar-se no país. A divulgação de documentos da filiação ao partido nazista do pai de Kast na Alemanha e a acusação de assédio contra Boric por práticas machistas em um caso de nove anos atrás expressam o nível de tensão.

Em meio às pautas da campanha, muitas vezes ocupada por temas como a proibição dos rodeios, a discussão sobre a ­saída do mar para a vizinha Bolívia ou alusões sobre os governos de Venezuela, Cuba e Nicarágua, o Congresso encaminhou o projeto de pensão básica universal no valor equivalente a 1,2 mil reais para cidadãos acima dos 65 anos, aprovou o casamento entre indivíduos do mesmo sexo e avança na reformulação da Constituição, projeto respaldado por Boric e rejeitado por Kast. Resta saber se uma eventual vitória do candidato pinochetista será capaz de deter o vento de mudanças trazido­ pelas maciças manifestações de 2019. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1188 DE CARTACAPITAL, EM 16 DE DEZEMBRO DE 2021.

CRÉDITOS DA PÁGINA: JAVIER TORRES/AFP E MARTIN BERNETTI/AFP

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