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Recuar, jamais
Nas duas frentes de conflito, em Gaza e no Líbano, a possibilidade de cessar-fogo é remota


Em 2019, Aviv Kochavi, então chefe do Estado-Maior das Forças de Defesa de Israel, fez um discurso confiante. As FDI, proclamou, “têm tudo a ver com a vitória”. Quando se avalia que as principais ameaças à segurança do país eram atores não estatais, como o Hamas e o Hezbollah, Kochavi daria início no ano seguinte a uma nova doutrina operacional, intitulada “vitória decisiva”. Previa “operações rápidas e ofensivas, baseadas na utilização de unidades menores, apoiadas por um poder de fogo maciço” contra o que tinha sido redefinido como “exércitos terroristas baseados em foguetes”, incluída a possibilidade de os israelenses terem de lutar em duas frentes ao mesmo tempo.
Nove meses depois do início do conflito em Gaza, na sequência do ataque surpresa do Hamas no Sul de Israel em 7 de outubro, o Estado luta em duas frentes simultaneamente. Mas a promessa de uma “vitória rápida” ou “decisiva”, apesar da utilização de um poder de fogo maciço com consequências devastadoras para os civis em Gaza, revelou-se ilusória. E em meio à pressão internacional liderada pelos Estados Unidos por negociações de cessar-fogo significativas e um acordo de troca de reféns por prisioneiros, apoiado pela aprovação de uma resolução do Conselho de Segurança da ONU, a dinâmica da guerra prolongada impôs sua própria realidade.
A alegada existência de cartas enviadas por Yahya Sinwar, o líder do Hamas em Gaza, a descrever as baixas civis palestinas como “um sacrifício necessário”, sugere que o grupo vê o avanço do conflito sob uma luz fundamentalmente diferente daquela das autoridades israelenses. Embora muito tenha sido dito sobre as supostas reivindicações de Sinwar, mais significativo é o enquadramento: o Hamas vê sua batalha em termos de movimentos de libertação históricos, como a luta argelina pela independência da França, que sofreu importantes reveses civis pelas forças francesas.
O fracasso contínuo de negociações de cessar-fogo significativas expôs as opiniões diametralmente opostas de Israel e do Hamas, não apenas sobre o que o conflito representa hoje, mas sobre sua trajetória em longo prazo. A liderança política e militar de Israel acreditou durante anos ser possível administrar seus conflitos, tanto com os palestinos quanto com o Hezbollah no Norte, ao mesmo tempo ignorando os vetores políticos que impulsionam a violência, notadamente a exigência palestina de um Estado e de autodeterminação. O Hamas e o Hezbollah há muito visam, no entanto, um horizonte mais distante. Para o Hamas, em particular, a última guerra não é vista como parte de uma série de conflitos episódicos, mas como um envolvimento numa luta mais longa, que acredita que acabará por vencer. Se existe um ponto em comum nas avaliações do campo de batalha por Israel e pelo Hamas é a crença sombria, de ambos os lados, de que não há alternativa além de continuar os combates.
Há uma escalada dos confrontos entre o Hezbollah e o exército israelense
Por sua vez, Sinwar, numa de suas missivas noticiadas, falou em termos dignos de Macbeth. “Temos que seguir em frente no mesmo caminho que iniciamos”, teria escrito, segundo The Wall Street Journal. “Ou que seja uma nova Karbala”, acrescentou, em referência à batalha do século VII no Iraque, quando o neto do profeta Maomé foi morto com seus seguidores.
De modo mais geral, o Hamas acredita ter obtido seus ganhos mais importantes fora dos combates, na frente diplomática. A condução por Israel de uma guerra com “poder de fogo maciço” e o subsequente sofrimento civil catastrófico fizeram o país enfrentar um crescente isolamento diplomático e acusações de uma série de crimes de guerra, entre eles genocídio e o uso da fome como arma de guerra – acusações que Israel nega –, à medida que mais países reconheceram o Estado palestino.
Se isso explica a posição maximalista do Hamas nas negociações de cessar-fogo, que aceitará o fim dos combates apenas com a retirada de Israel de Gaza, a posição israelense, apesar do otimismo de Washington, é igualmente inflexível. A saída de Benny Gantz e de seu partido da coligação de emergência de Benjamin Netanyahu não só tornou o primeiro-ministro mais dependente de partidos de extrema-direita que se opõem a um cessar-fogo, como não conseguiu provocar uma crise política, vendo em vez disso crescer o apoio a Netanyahu nas pesquisas de opinião.
Não se trata apenas da questão da guerra em Gaza, onde o conflito impõe sua própria dinâmica perigosa. Na batalha paralela com o Hezbollah, lançada em apoio a Gaza em 8 de outubro, foram expostas as mesmas posições israelenses sobre a disputa administrada e a possibilidade de uma vitória rápida e fácil. Nove meses de combates diários e gradualmente intensificados deslocaram dezenas de milhares de moradores em ambos os lados da fronteira libanesa. Um cenário impensável em setembro passado – que Israel estaria envolvido numa guerra fronteiriça prolongada e perigosamente inconclusiva com o Hezbollah – tornou-se uma questão política em meio a pedidos crescentes de uma ofensiva muito mais ampla contra a força libanesa.
As conversações de desescalada, lideradas pelo enviado especial dos Estados Unidos, Amos Hochstein, não conseguiram uma solução eficaz, uma vez que o Hezbollah insistiu que sua própria campanha depende do fim da luta em Gaza. Embora o grupo tenha insistido que não deseja uma guerra total, mas que está pronto para isso, caso aconteça, o que permanece obscuro é como termina o conflito e em quais termos.
Assim como o Hamas, o Hezbollah considera que, se não ganhar, ao menos não perderá. A morte de cerca de 400 combatentes não preocupou a liderança, e resta saber se o grupo poderá ser persuadido em negociações a retirar-se da fronteira. A guerra nas duas frentes, independentemente do horror, parece destinada a continuar por enquanto. •
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.
Publicado na edição n° 1317 de CartaCapital, em 03 de julho de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Recuar, jamais’
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