Mundo
Raiva do espelho
Elon Musk persegue quem denuncia o vale-tudo na rede X


Começou com xingamentos infantis no Twitter, quando Elon Musk chamou minha organização de “maligna” e a mim pessoalmente de “rato”. Desde então, evoluiu para uma ação movida contra o Center for Countering Digital Hate (CCDH – Centro de Combate ao Ódio Digital), que fundei e dirijo, em um tribunal da Califórnia no início de agosto. O CCDH existe para pesquisar o ódio e a desinformação online e responsabilizar as empresas de rede social pelo desgaste dos direitos humanos e das liberdades civis. Nossa missão é conter a onda de racismo, antissemitismo, danos a crianças, negação do clima, ódio anti-LGBTQ+, desinformação sobre saúde e muitos outros perigos para a sociedade.
Viramos alvo de uma campanha de intimidação agressiva e cínica de Elon Musk, o homem mais rico do mundo e dono da rede digital X, antes chamada Twitter. Musk está nos destacando porque nossa pesquisa expôs suas falhas – o processo se destina a silenciar os críticos da X Corp/Twitter. Mas atacar o CCDH não removerá os neonazistas, supremacistas brancos e superdivulgadores de desinformação cuja volta ele permitiu. Apenas Musk pode desfazer seus próprios erros.
O CCDH está na vanguarda das reportagens sobre o ódio que prolifera no X/Twitter desde que Musk concluiu sua aquisição, no fim de outubro de 2022. Nossos relatos mostraram que, sob sua supervisão, o número de tuítes contendo calúnias aumentou em até 202%, que os tuítes que ligam pessoas LGBTQ+ à “sedução de crianças” mais do que dobraram, que o conteúdo e as contas de negação do clima estão aumentando e revelaram a falha do Twitter em agir contra o ódio postado por assinantes do Twitter Blue. Integrantes do próprio conselho de confiança e segurança do Twitter renunciaram, citando as revelações do CCDH, e nossa pesquisa foi amplamente divulgada por agências de notícias em todo o mundo.
O CCDH ergue um espelho para as plataformas de rede social e pede que reflitam se gostam ou não do reflexo que veem nele. Temos orgulho do nosso histórico de investigar e alertar sempre e onde quer que descubramos a proliferação de danos graves no Twitter/X, bem como no Facebook, Instagram, TikTok, Google, YouTube e outras plataformas. Musk não gostou do que viu no espelho. Mas em vez de assumir a responsabilidade e admitir o problema, ele tenta processar o espelho.
Há uma grande ironia no esforço desse autoproclamado “absolutista da liberdade de expressão” de bloquear com ameaças legais o debate honesto e a crítica justa e apoiada por pesquisas. Este episódio destacou outro problema extremamente grave. Um pequeno círculo de empresas de rede social detém um poder imenso sobre o mundo digital, sem controle ou prestação de contas, que hoje está inextricavelmente ligado ao mundo real. Musk não só tem a capacidade de fazer mudanças drásticas e repentinas na plataforma sem se importar com as consequências potencialmente desastrosas para a segurança de milhões de usuários, como detém um poder absoluto para cercear as perguntas que o público, os anunciantes e nossos representantes eleitos podem lhe fazer.
O número de tuítes com calúnias aumentou 202% desde que o bilionário comprou a empresa
Isso foi observado recentemente por três legisladores dos Estados Unidos no Capitólio, que escreveram uma carta contundente a Musk condenando a “posição hostil” da X em relação às iniciativas de pesquisa independentes e por “resistir pessoalmente” às tentativas dos pesquisadores de responsabilizar as plataformas de rede social. Os deputados Lori Trahan, Adam B. Schiff e Sean Casten também o pressionaram a esclarecer a decisão da X de restringir drasticamente o acesso a dados para esse tipo de pesquisa, reiterando uma solicitação não atendida pela empresa desde março de 2023.
No Reino Unido, Lucy Powell, a secretária paralela de digital, cultura, mídia e esporte, observou: “Precisamos desesperadamente da lei de segurança online para estabelecer regras, de modo que plataformas poderosas não ajam de acordo com os caprichos de um homem”. Powell e outros estão certos nessa avaliação. Os executivos de tecnologia operam impunemente porque não há regras que os restrinjam. Até que os governos do mundo aprovem uma legislação baseada nos princípios de segurança do produto, transparência, culpabilidade e responsabilidade, seremos forçados a viver com as consequências negativas das falhas da tecnologia – sem recurso ou supervisão democrática.
Por enquanto, minha organização está decidida a enfrentar esse prepotente do Vale do Silício. Mantemos nossa pesquisa baseada em fatos, nossas exigências de prestação de contas e nosso direito de criticar o sujeito mais rico do mundo. Essa luta é maior que o CCDH – é um momento de traçar limites. Se nos permitirmos ser intimidados por Musk e a X, isso dará luz verde aos outros gigantes das redes sociais para fazer o mesmo com qualquer um que se atreva a falar a verdade ao poder. Também enviaria uma mensagem para as grandes companhias de petróleo, de tabaco e outras de que relatórios ou pesquisas sobre negócios que eles alegam interferir em sua capacidade de lucrar podem ser contestados nos tribunais. Sem transparência e exigência de responsabilidade dos bilionários ou corporações, nossa democracia seria gravemente enfraquecida.
Sentimo-nos humildes e encorajados pelas manifestações de apoio até agora, tanto de nossos colegas da sociedade civil quanto do público que acredita, como nós, que se permitirmos bilionários a usar seu poder para fugir da responsabilidade, o dano à nossa democracia será devastador. Essa batalha não é só nossa – deve ser um esforço coletivo de todos aqueles que acreditam em enfrentar os poderosos para estabelecer uma internet livre e segura. •
*Imran Ahmed é fundador e CEO do Center for Countering Digital Hate EUA/Reino Unido.
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.
Publicado na edição n° 1273 de CartaCapital, em 23 de agosto de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Raiva do espelho’
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