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Quem ganha com a “limpeza étnica” em Mianmar?

Enquanto as atrocidades são descritas como o resultado de disputas históricas entre minorias, os interesses econômicos avançam sobre o território

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O alto comissário da ONU para os Direitos Humanos, Zeid Ra’ad al-Hussein, externou a suspeita de uma limpeza étnica da minoria muçulmana rohingya em Mianmar.

De acordo com a versão oficial, plenamente adotada pela mídia, o conflito teve início quando um grupo insurgente islâmico atacou instalações do governo, o que provocou uma resposta violentíssima dos militares. São centenas de mortos e centenas de milhares de mulçumanos que fugiram desesperadamente dos massacres.

Repete-se a explicação preponderante para essa barbaridade. Tratar-se-ia de “conflitos étnicos seculares” como consequência de um ódio irracional enraizado na cultura, religião, ou valores incompatíveis. É o mantra que se afirma sistematicamente quando se trata de conflitos no Oriente Médio, África e Ásia.

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Ora, a conclusão política a se retirar dessa fundamentação é que, se são conflitos de civilizações cujas identidades foram firmemente estabelecidas durante anos, alcançar a paz nessas circunstâncias é uma tarefa quase impossível. Outras considerações agregadas a essa explicação sempre mencionam algum grupo terrorista.

Até mesmo a vencedora do Prêmio Nobel da Paz, Aung San Suu Kyi, ativista dos direitos humanos, líder do partido governista em Mianmar, quebrou seu silêncio durante a crise humanitária e declarou que o governo protegerá os direitos de todas os cidadãos e não permitirá o terrorismo.

Muito embora conflitos esporádicos entre budistas e muçulmanos existam há décadas, as histórias de perseguição tem aumentado nos últimos anos.

E se em vez de entrar nesse debate infindável sobre supostas identidades culturais que se chocam de forma “inesperada e irracional” começássemos por olhar alguns mapas de Mianmar? 

Há meses tem havido ataques generalizados contra a minoria muçulmana rohingya no estado de Rakhine, em um local onde ocorrem desmatamentos de terra (marcado “R” no mapa abaixo), próximo de terminais de petróleo e de gás, por meio do quais os combustíveis serão transportados até a China (Projeto Shwe, consórcio de empresas chinesas e sul-coreanas).

Terá sido coincidência o episódio de perseguição aos mulçumanos no fim de março, em Meiktila (“M” no mapa, ao sul de Mandalay) em cidades próximas aos gasodutos? Ainda no rastro dos gasodutos, mais a norte, em 2 de abril, “ coincidentemente” um outro conflito étnico no estado de Kachin (“K” no mapa)?

O fato a ser considerado é que Mianmar, a “última fronteira asiática” do processo de expansão capitalista na região, começou a abrir sua economia na década de 1990, mas só depois de as reformas realizadas em 2006 é que o país se tornou o paraíso das corporações de mineração e companhias de petróleo, gás e metais preciosos. O PIB quadruplicou nos últimos dez anos, o que fez com que a nação se tornasse terreno de intensa competição entre empresas multinacionais dos EUA, França, Canadá, Japão, Índia e Arábia Saudita.

Além disso, houve um enorme aumento de aquisições corporativas de terras para mineração, madeira, agricultura e água. Tudo isso teve como resultado a escravização de trabalhadores, a destruição de meio ambiente e a expulsão em massa de moradores de suas terras.

Essa conquista de terras expandiu-se enormemente nos últimos anos. A atribuição de terras a grandes projetos aumentou 170% entre 2010 e 2013. Em 2012, houve uma mudança na lei que regula a aquisição de terras para favorecer investidores estrangeiros. Recentemente, o governo alocou por volta de um milhão de hectares (3,1 milhões de acres) na área dos rohingya para o desenvolvimento rural corporativo. O salto é enorme se levar em consideração que ate 2012 eram apenas 7 mil hectares (17 mil acres).

Na verdade, a expropriação também atinge pequenos agricultores budistas. Ou seja, o foco internacional sobre religião tem ofuscado o vasto processo de grilagem de terras que afetou milhões de habitantes, independentemente da religião. Visto dessa perspectiva, a perseguição dos mulçumanos é uma forma de liberar a aquisição corporativa de terra e água. A queima de suas casas torna o processo irreversível, forçando-os a fugir.

Esta é uma situação extremamente favorável para as corporações expandirem seus domínios enquanto olhamos para a “barbárie dos conflitos étnicos”. O fato é que as elites, nacionais e internacionais, de qualquer etnia ou religião, constroem narrativas de conflitos em que incidentes menores entre integrantes de grupos opostos são reinterpretados na linguagem de animosidade grupal e utilizados em manifestações para incitar a violência organizada e localizada em espaços estratégicos.

Quem quiser compreender as causas mais profundas do desastre humanitário em Mianmar precisa olhar com mais atenção para a movimentação econômica e política das elites, nacionais e internacionais, e menos para as questões religiosas. Nesse sentido, na medida em que o surrado apelo para acordos, diálogos e mediações mira exclusivamente no conflito, sem questionar suas causas econômicas e políticas, terá o único efeito, intencional ou não, de sedimentar esse projeto de expulsão de milhões de seres humanos de seus lares.

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