Mundo
Queijo suíço
Outro vazamento de documentos secretos confirma a fragilidade e as intrigas dos serviços de inteligência


Os Estados Unidos vivem, nos últimos tempos, um constante déjà vu. Aquela sensação de que o mesmo filme passou antes – e nesse caso passou mesmo. O vazamento de assuntos secretos não é novidade em um país onde a divulgação de lotes inteiros de documentos listados como sigilosos, ao longo do tempo, caíram nas mãos de jornais como The New York Times, The Guardian ou Washington Post. O analista Daniel Ellsberg protagoniza um dos mais famosos casos, o Pentagon Papers, na década de 70 do século passado. Ellsberg fez escola. Vieram depois Edward Snowden, Chelsea Manning e Reality Winner. Os últimos casos descortinam, porém, a incompetência da segurança nacional, tão exaltada por Hollywood.
Há poucos meses, pilhas de documentos, vários classificados como ultrassecretos, foram encontrados nas residências do ex-presidente Donald Trump, do ex-vice-presidente Mike Pence, e do atual mandatário Joe Biden acomodados sem a menor parcimônia em caixas amontoadas pelo chão e armários de uma garagem. Mas o pior estava por vir. Em 6 de abril, o Departamento de Segurança descobriu que documentos altamente confidenciais do Pentágono foram amplamente compartilhados nas redes sociais. Qualquer usuário do Twitter ou do Telegram conseguiria ter acesso aos métodos utilizados pelos EUA para espionar não apenas inimigos, mas também aliados. Inevitavelmente, a autenticidade dos dados foi confirmada e a disseminação das informações que tratavam especialmente da atuação norte-americana na Ucrânia, Oriente Médio, Coreia do Sul, Israel e China abalou a credibilidade nas autoridades competentes, além de comprometer sensivelmente a segurança das fontes. Alguns dos documentos revelavam até que ponto os EUA penetraram no Ministério da Defesa russo e como as comunicações foram interceptadas, muitas vezes com o apoio de fontes humanas. Segundo o New York Times, após os vazamentos, a Ucrânia viu-se obrigada a alterar alguns de seus planos militares.
Na quinta-feira 13, o grande embaraço veio à tona. Durante operação realizada por agentes do FBI, o aviador de primeira classe Jack Douglas Teixeira, de 21 anos, integrante da Guarda Aérea Nacional de Massachusetts, foi preso. Em nota, Biden diz ter orientado a comunidade militar e de inteligência a tomar medidas para proteger e limitar a distribuição de informações confidenciais. “Nossa equipe de segurança nacional está coordenando de perto com os nossos parceiros e aliados.” O procurador-geral, Merrick Garland, também afirmou em um comunicado à imprensa que Teixeira foi preso em conexão com a “remoção, retenção e transmissão não autorizada de informações classificadas de defesa nacional”, referência à Lei de Espionagem, usada para processar responsáveis por uso indevido e roubo de informações sigilosas.
Jack Teixeira, o acusado, tem apenas 21 anos
Embora o aviador tenha sido, na sexta-feira 14, formalmente acusado em um tribunal federal de Boston de ser a fonte do vazamento maciço de informações de defesa nacional e outros documentos confidenciais, até o momento segue um mistério como um jovem de 21 anos conseguiu ter acesso e vazar dados de segurança nacional sem que o Pentágono tivesse conhecimento. Também não há respostas sobre como, após tantos recorrentes escândalos a envolver vazamentos de documentos oficiais e sigilosos, o Departamento de Defesa dos Estados Unidos permanece assombrado e, como se vê agora, por fantasmas com patentes cada vez menores.
Teixeira é aviador júnior e na Força Aérea era técnico de informática de baixo escalão na Otis Air National Guard Base, em Massachusetts. Ainda assim, conseguiu ter acesso aos dados. Segundo especialistas, as agências de inteligência norte-americana tentam há anos modernizar seus sistemas sucateados. O problema é que o volume de material aumenta exponencialmente e não há mão de obra suficiente para atender a tamanha demanda. Em março, o governo federal tentou resolver a deficiência no sistema por meio da injeção de 26 bilhões de dólares em financiamento, sem sucesso, como se vê.
De acordo com as investigações, as centenas de páginas de informações secretas foram publicadas por Teixeira em um grupo privado de bate-papo de jogos online chamado Thug Shaker Central, na plataforma Discord. Quase um mês após as primeiras postagens, um dos integrantes decidiu compartilhar o conteúdo nas redes sociais mais convencionais e com acesso público – só então o governo e a mídia tomaram conhecimento do que se passava. À época, durante entrevista coletiva, o secretário de Defesa, Lloyd Austin, estava tão atordoado que mal conseguia explicar a situação. “Eles estavam em algum lugar na web. Onde exatamente e quem tinha acesso naquele ponto, não sabemos. Nós, simplesmente, não sabemos neste momento”.
Durante as buscas realizadas na casa do aviador, agentes do FBI encontraram um número significativo de armamentos. Em entrevista à CNN, ex-colegas de escola de Teixeira disseram que o jovem era obcecado por armas, militares, guerras, religião, e tinha o hábito de fazer comentários racistas. Mas, ao contrário do perfil de seus antecessores, o jovem não demonstrava indignação sobre irregularidades no sistema ou nas políticas governamentais. As investigações apontam que ele teria compartilhado os documentos por pura diversão e desejo de ser respeitado pelo grupo formado em sua maioria por adolescentes. Nos próximos dias, Teixeira saberá se terá o direito de responder ao processo em liberdade. Na sexta 14, enquanto o juiz lia seus direitos, o jovem apenas consentia em silêncio. Nos Estados Unidos, qualquer cidadão condenado por transmitir intencionalmente informações de defesa nacional pode pegar até dez anos de prisão. •
Publicado na edição n° 1256 de CartaCapital, em 26 de abril de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Queijo suíço’
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