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Que se aprenda a lição com o Genocídio Armênio

Os desvarios das guerras e das perseguições políticas e religiosas atuais demonstram que a nossa ideia sobre convivência humana está equivocada

Missa na Igreja Apostólica Armênia São Jorge, realizada em 2013 em homenagem aos mortos no genocídio armênio
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Alguns (poucos) anos atrás, eu passava por baixo de um viaduto na entrada da Avenida Rebouças, na cidade de São Paulo, quando vi uma faixa estendida: “Dia 24 de Abril: memória aos mártires do Genocídio Armênio”. Tinha 43 anos de idade e nunca havia tido conhecimento, até então, desse episódio tão marcante da história mundial – e que, por sua impunidade, alterou toda a história do século XX em diante.

Como um de meus irmãos é casado com uma moça de descendência armênia, e tenho grande estima por sua família, comecei a pesquisar e questionar sobre o assunto. As respostas me deixaram estarrecido.

Reconhecido pelos governos da Alemanha, da Rússia, da França, da Itália, do Canadá e do Vaticano, entre tantos outros (e até pelo Papa João Paulo II), o Genocídio Armênio foi o primeiro holocausto ocorrido no século XX. Esse século, caracterizado por um espetacular avanço científico e tecnológico em todas as áreas do conhecimento humano, comprovou aquilo que é o infeliz fato consensual ocorrido ao longo de toda a história da humanidade: o progresso científico caminha anos-luz à frente do progresso moral. E o século XX começou com o apagar da esperança de centenas de milhares de armênios.

O Genocídio Armênio, fato amplamente embasado e relatado em documentação histórica, foi uma política de erradicação friamente calculada e sistematicamente colocada em prática dentro das fronteiras do Império Otomano, entre os anos de 1915 a 1924. No período, aproximadamente 1,5 milhão de armênios foram mortos, expatriados e tiveram seus bens confiscados pelo então governo da Turquia. Os atos ocorreram o mais longe possível dos olhos da população turca, que não aprovaria a ação.

Engendrado pelos principais dirigentes da coalisão de diferentes grupos que comandavam a Turquia à época, denominada “Jovens Turcos”, – os paxás Mehmed Talaat, Ismail Enver e Ahmed Djemal – a ferocidade e a brutalidade da execução das mortes chocaram as autoridades da época. Estupros em massa, pessoas crucificadas ao longo de quilômetros de estradas, deportação em trens semelhantes ao que se viu anos depois no Holocausto Judaico, e (infelizmente) muito mais. Tudo documentado em fotos e relatos.

Lord James Bryce, na época, mais de uma vez relatou à Câmara dos Lordes, no Parlamento Inglês, as terríveis barbáries que estavam ocorrendo, mencionando que “não se via nada assim desde a época de Tamerlão”; ao mesmo tempo, Henry Morgenthau, embaixador norte-americano na Turquia, reportava a Washington os crimes perpetrados.

Concomitante à Primeira Guerra Mundial, o genocídio foi ignorado pelas principais potências do planeta devido a diversos interesses particulares. A não-impunidade, além de ter possibilitado uma ação devastadora, resultou em consequências terríveis em diversos acontecimentos do século XX, fatos que provavelmente só foram perpetrados devido à insana segurança que a impunidade gera.

Diversos interesses estimularam o genocídio; além de óbvios interesses econômicos e políticos (o Império Otomano estava se esfacelando, e temia-se uma luta por autonomia pela Armênia), marcantes diferenças religiosas e culturais entre turcos e armênios serviram para justificar as ações. Os armênios eram um enclave cristão em meio a um desejo de formação da Pan Turquia, uma nação que reuniria sob um mesmo esforço os países muçulmanos de descendência mongólica do Cáucaso e da Ásia, formando uma potência capaz de resistir à crescente dominação russa e estabelecer posição de destaque frente aos países europeus.

Hoje a Armênia é apenas uma pequena parte do que já foi no passado recente. Muitos trechos de seu território foram tomados, e o país não tem mais fronteira marítima, por exemplo, o que complica drasticamente a economia do país devido aos custos de transporte de bens e pessoas. Porém, muito mais do que apenas discutir o que acontece com um povo, é importante discutir o que acontece com toda a humanidade: parece que, infelizmente, a humanidade se recusa obstinadamente a aprender com os erros do passado, e teima em cometer os mesmos erros na atualidade. Vira e mexe temos notícias de genocídios acontecendo em diferentes partes do planeta, e tantas barbáries mais; porém, atualmente, além dos genocídios físicos, existem os igualmente letais genocídios econômicos, e a pressão social do globo explode em atos de violência e intolerância no mundo todo.

Muitas vezes pensamos: o que está acontecendo na Crimeia é muito longe daqui; o que está acontecendo na República Democrática do Congo é muito longe daqui; o que está acontecendo em qualquer lugar em que minha família ou meus entes queridos não estejam é muito longe daqui… mas será mesmo?

Tudo na vida é interligado.

Neste exato momento pode estar acontecendo alguma coisa, em algum canto do planeta, que esteja prestes a afetar e mudar nossa rotina, nossa segurança, nossa vida. Não foi assim com a ascensão do Nazismo e com a Segunda Guerra Mundial?

Não adianta pensarmos em harmonia social em nível global se não pensarmos em harmonia social em pequena escala. Não adianta pensarmos em harmonia global enquanto a intolerância, a ganância e o egoísmo pautarem as ações. E não adianta pensarmos em harmonia social global enquanto a impunidade continuar como grande deseducadora das pessoas. Como crianças, precisamos sentir o peso da responsabilidade por nossos atos; precisamos compreender que todos os seres humanos têm algum tipo de envolvimento emocional com alguém, todos têm sentimentos, preocupações e carinho. Todos sentem a ausência dos que amam, todos sentem as desgraças e as mortandades. Os desvarios das guerras e das perseguições políticas e religiosas demonstram que a nossa ideia sobre convivência interpessoal está equivocada.

No ano passado, li uma reportagem publicada no caderno Internacional do jornal O Estado de São Paulo, em 13 de junho de 2013, na qual o jornalista Chris Bohjalian, do The Washington Post, faz um relato sobre algumas vidas entrelaçadas nos acontecimentos que se desenrolaram durante o Genocídio Armênio. É um relato importante a mostrar os impactos do que aconteceu com os armênios no começo do século XX – e que continua acontecendo hoje. Estupros, violência, usurpação de direitos… até quando?

 

 

Luis Carlos Magaldi Filho é engenheiro agrônomo e escritor e autor de “O Grito do Cordeiro”, sobre a trajetória de uma sobrevivente do Genocídio Armênio

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