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Quatro anos depois, a Líbia é um caos

A União Europeia cogita sancionar guerrilheiros líbios contrários ao acordo de paz, rara boa iniciativa que pode ajudar o país africano

Homens do Amanhecer Líbio carregam suas armas durante confronto com tropas do governo reconhecido internacionalmente em Sabratha, cidade a 87 quilômetros de Trípoli, em 25 de maio
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Quatro anos depois de abandonar a Líbia à própria sorte após a derrubada de Muammar Kaddafi, a Europa volta a prestar atenção ao país norte-africano. Pressionada pela crise humanitária que irrompeu no Mediterrâneo e expôs a hipocrisia do continente, a União Europeia cogita sancionar alguns guerrilheiros líbios que têm bloqueado a implantação de um acordo de paz mediado pelas Nações Unidas. Ainda que tardia, a ação pode ser benéfica para a Líbia e muito mais efetiva que a preocupante ideia de colocar uma força naval para combater os barcos de pesca de traficantes de pessoas.

A Líbia vive situação desastrosa. Desassistido após o assassinato do seu ditador, o país não conseguiu superar uma de suas mais nocivas heranças, a eliminação da sociedade civil, substituída, nos 40 anos de autoritarismo, por um culto forçado à psicótica personalidade de Kaddafi. Desde 2011, a Líbia teve duas eleições parlamentares, mas elas não foram suficientes para conciliar os interesses dos diversos grupos políticos e étnicos suprimidos por Kaddafi ao longo de quatro décadas. Engolfada em guerra civil iniciada em 2014, a Líbia corre o risco de se dividir.

Trípoli x Tobruk

O caos envolve dois governos que reivindicam a legitimidade sobre o controle do país. Na capital, Trípoli, está baseado o Congresso Nacional Geral, que não é referendado por nenhum governo estrangeiro. No leste do país, em Tobruk, cidade próxima à fronteira com o Egito, está o Conselho de Representantes, este reconhecido pela comunidade internacional.

Conhecido pela sigla GNC, o Congresso Nacional Geral foi eleito em julho de 2012 com a missão de coordenar a transição democrática da Líbia. Dominado por partidos islamitas (adeptos do Islã político), o GNC não teve sucesso. Milícias armadas que ajudaram a derrubar Kaddafi continuaram a exercer grande poder e o país viveu uma onda de assassinatos que vitimou dezenas de militares e ex-aliados desse ditador.

Em maio de 2014, o GNC foi vítima de uma tentativa de golpe. O artífice da ação militar foi o general Khalifa Haftar, hoje figura central na Líbia. Por cerca de 20 anos, Haftar viveu confortavelmente com a família no estado norte-americano da Virgínia, onde ganhou cidadania, e votou nas eleições de 2008 e 2009. A escolha desse estado como residência parece não ter sido uma coincidência: nas duas últimas décadas, Haftar trabalhou por algum tempo para a CIA, agência de inteligência dos Estados Unidos sediada em Langley, no norte da Virgínia.

O contato com a espionagem americana vinha de longa data. Em 1987, Haftar, então general do Exército de Kaddafi, caiu em desgraça com o ditador líbio após uma derrota para as forças do Chade em guerra entre os dois países. Abandonado pelo homem que se autoproclamava seu “pai espiritual”, Haftar passou a liderar contra ele a Frente Nacional de Salvação da Líbia, baseada no próprio Chade e apoiada pela CIA. Em pouco tempo, a frente naufragou e Haftar, resgatado pelos americanos, foi para os EUA.

Desde a Primavera Árabe, Haftar esteve duas vezes na Líbia. A primeira em 2011, no auge dos protestos contra Kaddafi. Ele comandou alguns dos grupos armados anti-Kaddafi e tentou aproveitar o vácuo de poder para se posicionar na então florescente política líbia. Sem sucesso, o general voltou para os Estados Unidos, onde ficou até o início de 2014, quando retornou à Líbia para organizar o golpe contra o Congresso Nacional Geral, segundo ele uma necessidade diante dos “terroristas disfarçados de políticos” que controlavam o país.

Os grupos islamitas responderam por meios políticos e militares. De início, convocaram novas eleições, realizadas em junho de 2014. Derrotados, não reconheceram o resultado do pleito ou a formação do Conselho de Representantes. Em julho, milícias islamitas invadiram Trípoli e expulsaram o Conselho de Representantes para Tobruk. No vácuo de poder, parlamentares islamitas formaram um novo Congresso Nacional Geral e passaram a reivindicar o posto de governo eleito.

Muitos conflitos em um só

As ações de Haftar e das milícias islamitas galvanizaram a impressão de que o conflito na Líbia poderia ser reduzido a um confronto entre remanescentes do antigo regime e os adeptos do Islã político, nos moldes do que ocorre no Egito. Esse diagnóstico maniqueísta serve aos propósitos dos extremistas de ambos os lados, mas nubla a complexa realidade líbia.

As milícias islamitas coordenam-se por meio de um grupo conhecido como Amanhecer Líbio, que mistura islamitas moderados e fundamentalistas, muitos veteranos do Grupo de Luta Islâmico Líbio, que lutou ao lado de Osama bin Laden contra a União Soviética no Afeganistão e, depois, voltou suas forças contra Kaddafi.

Além desses, há uma série de revolucionários líbios com pouca ou nenhuma ligação com a religião, entre eles as milícias da cidade costeira de Misrata ou os bérberes, uma minoria líbia, que entraram no conflito por motivações tribais, territoriais ou étnicas. 

Do mesmo modo, o lado de Haftar e do Conselho de Representantes conta não só com militares e ex-aliados de Kaddafi, mas com brigadas armadas de Zintan, cidade montanhosa rival de Misrata, e árabes beduínos do interior, todos engajados em acertos de contas e disputas antigas.

Sanções 

Em meio a esse caos, a Líbia tornou-se mais um país afetado pelo Estado Islâmico, o grupo extremista que tomou partes da Síria e do Iraque e tem exportado sua ideologia para outras regiões. Na Líbia, o Estado Islâmico controla a pequena cidade de Nawfaliyah e algumas partes da cidade de Sirte, e tem entre 3 e 5 mil recrutas, a maioria estrangeiros. Paraíso para os jihadistas, a Líbia se tornou campo de treinamento para terroristas internacionais, como o que matou dezenas de turistas ocidentais na Tunísia no fim de junho.

Refugiados Integrantes da Marinha francesa durante operação de resgate no Mediterrâneo em 20 de maio

Além do ISIS, o vácuo de poder abriu as portas para quadrilhas de traficantes de pessoas, que agem livremente na Líbia. São essas as organizações responsáveis por usar o território líbio como base para enviar, em condições precárias, imigrantes de muitos países africanos para a Europa, que fogem da tirania, da fome e da doença.

Em 12 de julho, o enviado da ONU para a Líbia, Bernardino Leon, conseguiu que diversos grupos envolvidos no conflito, incluindo o governo reconhecido do Conselho de Representantes, assinassem um acordo de paz. O Amanhecer Líbio, o GNC e os militares ligados a Haftar, entretanto, negaram-se a referendar o novo processo de transição.

Diante disso, a União Europeia está, segundo a agência Reuters, preparando sanções pessoais contra cinco dos guerrilheiros: Haftar e o ex-comandante da Força Aérea Líbia Fakir Jarroushi, além de três chefes do Amanhecer Líbio: Abdulrahman Suweihli, Salah Badi e Abdulraouf Mannay.

É provável que o vazamento da informação sobre as sanções seja uma forma de pressionar os extremistas a optar pela mesa de negociações. Mais que isso, é um reconhecimento por parte da União Europeia de que a solução para a crise de refugiados passa pela governança da Líbia, e não é meramente uma questão de segurança.

Por quatro anos, os países europeus negligenciaram a Líbia, equivoco expresso pela diferença de gastos do Reino Unido com os ataques para derrubar Kaddafi e com a posterior reconstrução do país: foram 320 milhões de libras ante 25 milhões, quase 13 vezes mais. Foi preciso que os “indesejados” imigrantes batessem à porta da Europa para que os governantes do continente agissem. Ainda que com atraso, é hora de a UE mudar suas práticas e ajudar a Líbia a trilhar um caminho de estabilidade e prosperidade.

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