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Quando o futuro passa pela Síria

Após a demissão do premier Mikati, o país aguarda eleições. Importante mesmo é o destino em Damasco

O Hezbollah estaria envolvido no assassinato de Rafik Hariri em 2005 e hoje apoia o ditador Assad, de quem Mikati foi amigo. Foto: Marco Di Lauro/Getty Images
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A demissão do premier Najib Mikati na sexta-feira 22 foi o primeiro efeito colateral geopolítico da guerra na Síria. Há 18 meses no cargo, Mikati, de 57 anos, era considerado um “conciliador” capaz de resolver os problemas suscitados pelo sectarismo que assola o Líbano, um mosaico de religiões. E supunha-se que o novo premier teria algum controle sobre a política exterior do país. Mikati mantém excelentes relações com o alauita-xiita Bashar al-Assad, ditador sírio, país onde o então premier fez fortuna na telefonia, e, ao mesmo tempo, com os sauditas, estes sunitas fundamentalistas.

A chegada de Mikati ao poder aconteceu antes de o conflito na Síria tornar-se uma guerra civil. Os estilhaços do conflito no país vizinho, que ocupou o Líbano de 1975 a 2005, são consideráveis. De saída, mais de 350 mil refugiados, entre eles 8 mil palestinos, levaram ao Líbano apenas a roupa do corpo. Microcosmo das divisões sectárias encontradas na Síria, algumas das mesmas separações religiosas são nítidas nos bairros libaneses, alguns dominados por refugiados sunitas, outros povoados por xiitas. Essa dividida população de refugiados poderia provocar uma nova guerra civil no Líbano, embora não mais entre cristãos e muçulmanos. Desta feita se daria entre sunitas e xiitas, como na Síria.

Os sunitas no Líbano são favoráveis a uma vitória do Exército Livre da Síria, verdadeiro saco de gatos a conter desde combatentes unicamente dispostos a tirar do poder Assad até jihadistas de diversos credos fundamentalistas armados pelos fundamentalistas sunitas da Arábia Saudita e do Catar – e, quiçá, em breve por franceses, britânicos e norte-americanos. Por sua vez, os refugiados xiitas apoiam o exército de Assad, este armado pela Rússia e pelo Irã. No Líbano, esses refugiados procuram se situar nos bairros vizinhos ao ocupado pelo Hezbollah, a legenda xiita com braço armado pelo Irã. Segundo o semanário francês Journal du Dimanche, o Hezbollah teria enviado entre 3 mil e 4 mil combatentes para lutar ao lado dos iranianos na Síria.

E de fato aconteceu que, por causa de resistências dos xiitas do Hezb, como é popularmente conhecido o Partido de Deus, Mikati pediu demissão. Ou pelo menos essa é a razão oficial apresentada pelo ex-premier. Os motivos seriam dois. Com maioria no Parlamento, os deputados do Hezbollah rejeitaram o plano do governo de formar uma comissão para monitorar as eleições legislativas marcadas para o próximo mês de junho. Os xiitas também recusaram-se a manter o general Ashraf Rifi no comando da Força de Segurança Interior (FSI). Rifi, virulento oponente de Assad, deveria se aposentar. Mas, por causa do assassinato em outubro de seu sucessor, o general Wissam al-Hassan, o comandante das FSI deveria, a pedido de Mikati, permanecer no cargo. Al-Hassan, que teria recolhido provas do envolvimento do Hezbollah e da Síria no assassinato do ex-premier Rafik Hariri e de mais 22 pessoas, em fevereiro de 2005, teria sido vítima, de um atentado armado pelos serviços sírios.

Foi graças ao Hezbollah que Mikati, sunita como deve ser todo primeiro-ministro libanês, foi empossado em 2011. Também teve importância para sua vitória o voto recebido do líder da comunidade drusa Walid Jumblatt, do Partido Socialista Progressista. À época, o então premier Saad Hariri, filho e sucessor do falecido Rafik, foi deposto quando 11 ministros do Hezbollah renunciaram. Na época, a crise política era chamada em Beirute de golpe de Estado.

Os ministros xiitas renunciaram porque o Hezbollah não conseguiu convencer Saad Hariri a pôr um fim nas investigações do Tribunal Internacional no Líbano (TIL), situado nas cercanias de Haia. A Corte das Nações Unidas realiza em um inquérito sobre os culpados pela morte de Rafik. Segundo vazamentos do inquérito do TIL, integrantes do Hezbollah teriam sido os responsáveis pela explosão de um caminhão que, em pleno centro de Beirute, provocou a morte de Rafik. Para Hassan Nasrallah, líder do Hezbollah, o tribunal nasce de um complô entre os Estados Unidos e Israel para desestabilizar o Líbano.

No atual contexto, o presidente Michel Suleiman, cristão maronita, tentará nomear um novo chefe de governo interino. Para tanto, o Parlamento está convocado para a próxima semana, mas há outra tarefa para o Legislativo, votar uma nova lei eleitoral, para substituir a atual, em vigor desde 1960. A nova lei dita que eleitores devem votar somente em candidatos de seus próprios credos. A proposta não é nova. Já foi levada à colocada sobre a mesa por agremiações cristãs para que sua comunidade possa ser mais bem representada no Parlamento. Entenda-se que os pleitos seriam mais justos. Opositores alegam, porém, que a abolição da lei incrementaria o sectarismo profundamente enraizado no país. Como vimos, o sistema político libanês existe desde a independência, em 1943. O presidente é sempre cristão maronita, o premier é sunita e o presidente do Parlamento, xiita.

Com ou sem a reforma eleitoral, a demissão de Mikati poderia postergar as eleições legislativas. Em entrevista ao diário libanês L’Orient-Le Jour publicada na quinta-feira 27, Mikati disse que não poderia servir como premier interino para organizar eleições porque será, diz, candidato. “Não quero me aposentar”, disse o político-empresário, dono de uma fortuna de 2,5 bilhões de dólares segundo a Forbes. E recomendou: “Momentos de crise requerem um governo de união nacional”. Em miúdos, todas as legendas deveriam participar. E, para evitar o contágio da crise síria, ele propõe: “Devemos focar nos problemas domésticos porque o país não pode mais suportar novos abalos”.

Indagado sobre o motivo de sua renúncia, Mikati retrucou: “Fui embora porque estava cheio”. Cheio? Mas logo explicou: “Não gosto que me digam o que fazer”. Teria o Hezbollah, que o nomeou premier, solicitado seu apoio a Assad? Teria mudado algo nas relações de Mikati com o ditador sírio? Recorda-se que Assad, antes de assumir o poder, ficou hospedado na casa de Mikati em Londres. Ou teria havido pressão por parte dos poderosos sauditas? Há quem observe que Mikati, em uma entrevista televisiva em 2011, declarou ter contado com o aval saudita.

A demissão de Mikati poderia ter um aspecto positivo? Fouad Siniora, o ex-premier, diz, por exemplo, que o diálogo foi renovado. No novo tablado político, o Hezbollah arrisca-se a perder a maioria no Parlamento caso o líder druso Jumblatt una forças com a agremiação de Hariri, o 14-Março. Mas, pleito a parte, o futuro do Líbano parece estar atado ao da Síria.

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