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Quando é justificável violar a soberania de um Estado?

As ações da Rússia na Crimeia salientam a necessidade de um novo acordo. Editorial do Observer

Dmitry Medvedev, primeiro-ministro da Rússia, observa a passagem de tropas russas em Sebastopol, na Crimeia, na segunda-feira 31. Foi a primeira visita de uma autoridade política russa à região que pertencia à Ucrânia e foi tomada por Moscou
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Obrigar outros países a fazer o que você quer é um objetivo básico de todos os governos e líderes políticos. Na semana passada em Bruxelas, Barack Obama sugeriu que havia duas maneiras de alcançar isso. Uma, que ele prefere, emprega diplomacia, persuasão, responsabilidade democrática e outras ferramentas do poder brando. A outra, que ele rejeita, envolve o uso da “força bruta”. A Rússia é acusada pela Casa Branca de recorrer à última opção na Ucrânia. A Rússia responde irritadamente que os Estados Unidos têm duplos critérios. O que foram as invasões do Iraque e de Kosovo, se não o uso arbitrário e não sancionado do poderio militar? Aquilo foi totalmente diferente, dizem os norte-americanos.

O “x” desse debate excessivamente simplificado é que não existe um acordo sobre quando, como e por que um país, um grupo de países ou a “comunidade internacional” podem intervir nos assuntos de um Estado soberano. Depois da Guerra Fria, surgiu nas capitais ocidentais um consenso frouxo em torno da ideia de intervenção humanitária. Tony Blair, falando em Chicago em 1999, reviveu o conceito de “guerra justa”. Em um mundo globalizado e interconectado, ele afirmou, os países deveriam abandonar o princípio ultrapassado da não interferência. Combinando interesse próprio e objetivo moral, eles tinham o dever de defender e manter os valores universais, incluindo os direitos humanos. “Hoje somos todos internacionalistas”, ele declarou. O pano de fundo da “doutrina Blair” foi a limpeza étnica em Kosovo, mas também o genocídio que começou 20 anos atrás em Ruanda, que custou cerca de um milhão de vidas. O ex-presidente americano Bill Clinton e outros no poder na época reconheceram mais tarde que essa chacina poderia ter sido evitada e que a intervenção militar seria adequada.

Como que aprendendo esta lição, seguiram-se, depois de Kosovo, intervenções internacionais relativamente benignas em Timor Leste e em Serra Leoa. Mas então Blair, em conluio com George W. Bush, afundou sua tese, primeiro no Afeganistão e depois no Iraque.

Enquanto Hamid Karzai se prepara para deixar a presidência e as tropas da Otan fecham suas mochilas, o futuro do Afeganistão está novamente envolto em uma temível incerteza. Os países de partida, como a Grã-Bretanha, devem enquanto isso enfrentar a desconfortável pergunta: o que nós alcançamos? Ainda mais que no Afeganistão, a intervenção no Iraque afinal deixou de satisfazer os cinco critérios que Blair expôs em Chicago para a intervenção militar justificada: há uma boa tese? A diplomacia falhou? A ação militar terá sucesso? Estamos preparados para isso? E ela atende a nossos interesses nacionais? O trauma no Iraque destruiu o consenso internacional já frágil sobre a intervenção humanitária. Sua legalidade questionável e o alto custo financeiro e humano minaram a confiança e alienaram o apoio. No Ocidente, o cansaço da guerra que durou (e dura) uma década, e a desconfiança se enraizaram.

Outros, como os russos, tiraram conclusões cínicas. Uma consequência do Iraque foi a recusa pelos políticos e pela opinião pública dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha a apoiar a intervenção na Síria. Lá, poderíamos argumentar de maneira convincente, a tese para deter à força a guerra assassina do presidente Bashar al-Assad contra seu próprio povo, contendo a perigosa desestabilização em toda a região e evitando nova radicalização dos islâmicos linha-dura, é preponderante. Na Síria, todos os dias inúmeros inocentes são mortos, torturados, estuprados ou feridos como se estivessem diante de nossos olhos. Mas nossos olhos estão bem fechados.

No Egito também, onde uma junta militar hoje repete ou supera os excessos da era Mubarak, a intervenção ocidental não está em jogo, mas isso porque Washington prefere muito os generais egípcios à Irmandade Muçulmana. Essa falta de consenso real ou significativo, quanto mais de um livro de regras, sobre a intervenção internacional explica em parte a comoção sobre os atos supostamente “protetores” da Rússia em relação aos russos étnicos na Crimeia. Distorcendo o direito à autodeterminação garantido pela ONU, Vladimir Putin decidiu que podia fazer o que quisesse, assim como os EUA fizeram, ele argumenta. À parte o impacto na Ucrânia, tal comportamento mina o Conselho de Segurança e a Carta da ONU e outros tratados que sustentam o sistema internacional. E convida à emulação.

Por exemplo, a Crimeia é hoje um precedente que justifica uma futura invasão chinesa a Taiwan? Todos os casos são diferentes. Mas forjar um novo consenso internacional sobre os princípios que governam o intervencionismo armado é um desafio urgente. Como ponto de partida, deve-se considerar o provável cumprimento de cinco critérios, significativamente diferentes dos de Blair. Os que contemplam a intervenção devem perguntar a si mesmos: 1) Essa ação tem amplo apoio doméstico e internacional? 2) Quais são exatamente seus objetivos, e eles são realistas? 3) É legal? 4) É moralmente justificável? e 5) Como vai terminar?

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