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Quando a lei de acesso dos EUA bateu às portas da ditadura

Como, em 1976, um jornalista brasileiro conseguiu documentos desclassificados nos EUA que comprovam a participação norte-americana no golpe de 64

Foto: AFP
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Por Natalia Viana*

Os tempos eram outros, e o governo militar nem sonhava com a possibilidade de o Brasil adotar uma Lei de Acesso à Informação. Mas a lei americana já estava em pleno vigor. Através dela, em dezembro de 1976 o jornalista Marcos Sá Corrêa, então correspondente do Jornal do Brasil, obteve acesso a documentos desclassificados sobre a participação dos EUA no golpe de 64, que estavam na biblioteca Lyndon Johnson, no Texas.

A série de reportagens revelava as articulações dos americanos antes do golpe, mostrando que eles sabiam nos mínimos detalhes o que iria acontecer. Além de gravações de reuniões e despachos diplomáticos, havia documentos da CIA e diversos perfis de altos funcionários do governo militar. Os documentos também revelavam, pela primeira vez detalhes sobre a Operação Brother Sam, um plano de contingência do governo dos EUA que enviou parte da frota naval americana no Caribe em direção ao porto de Santos com 100 toneladas de armas leves, munições, carregamentos de petróleo e aviões de caça para apoiar militarmente o golpe, caso houvesse resistência.

No dia anterior à publicação, a bomba estourou na embaixada. O embaixador John Crimmins recebeu uma ligação de um nervoso José Magalhães Lins, sobrinho do então presidente do Senado Magalhães Pinto, relatando a publicação. “Magalhães Lins diz que ele recebeu essa informação do vice-presidente executivo do Jornal do Brasil, Nascimento Brito, um amigo pessoal. Nascimento Brito lhe contou sobre a obtenção dos documentos porque o nome de Magalhães Lins, ao lado de outros brasileiros proeminentes, aparece em muitos deles como fonte de informação (da embaixada)”, escreveu Crimmins em um despacho diplomático em 16 de dezembro. O diretor do jornal prometeu que o nome do amigo seria poupado. Mas o mesmo não poderia ser garantido se O Estado de São Paulo e a Revista Veja obtivessem os mesmos documentos – eles não teriam tanta “consideração”.

Consternado, Crimmins pediu a Kissinger orientações sobre como lidar com a imprensa. “Magalhães Lins está tentando através de contatos de alto nível com os serviços de segurança impedir a publicação pelo menos dos documentos mais sensíveis”, escreve o embaixador, acrescentando que “a embaixada, claro, não está tendo nenhum papel nesse esforço. Magalhães Lins tem consciência da nossa postura de não pôr as mãos nisso, e concorda totalmente”.

Mas em resposta, Kissinger limitou-se a dizer que os documentos haviam sido “desclassificados ou ‘higienizados’ como resultado do processo mandatório de revisão sob ordem executiva” e que estavam todos disponíveis ao público. “Nos casos em que há nomes, nem o contexto nem a substância do evento foi considerado de natureza sensível”.

Para irritação dos militares, a reportagem especial do Jornal do Brasil, publicada ao longo de três dias, explicava que os documentos podiam ser obtidos na biblioteca por apenas 15 centavos.

Antes disso, a embaixada tentara entrar em contato com a alta cúpula do Itamaraty para avisá-los de antemão. Mas só conseguiu contatar o embaixador João Hermes Pereira de Araújo, chefe do Departamento das Américas do Itamaraty, quando a reportagem já estava na rua.

Dias depois, em 23 de dezembro, Crimmins relataria em outro despacho que tanto Hermes Pereira de Araújo quanto o chefe de gabinete do Itamaraty, Luiz Pereira Souto Maior, o haviam procurado, demandado explicações. “Enquanto o ocorrido não nos ajudou muito, já que envolve pessoas ainda ativas e joga dúvidas sobre elas, também implica certos contatos por obter informação. A coisa toda é um pouco desconfortável”, lamentara, ao telefone, o chefe de gabinete Souto Maior.

*Publicado originalmente em Agência Publica.

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