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Putin ri por último
Os Estados Unidos forçam Kiev e a Europa a aceitarem um acordo de paz nos termos estabelecidos por Moscou
A Casa Branca apresentou uma proposta de acordo de paz para encerrar os quatro anos de guerra entre a Rússia e a Ucrânia. A primeira versão do documento de 28 pontos, vazado pelo site norte-americano Axios, era tão favorável a Moscou que os ucranianos a tomaram como um pedido de rendição trasvestido de acordo de paz. Pela proposta, a Ucrânia perderia território, reduziria seu efetivo militar, ficaria de fora da Otan e mudaria de governo. Em troca, talvez, deixaria de ser atacada.
O tom de ultimato reforçou a imposição: os EUA queriam uma resposta positiva de Kiev até 27 de novembro. Isso daria ao presidente Donald Trump a chance de festejar o que ele esperava ser seu mais novo triunfo como negociador, em pleno feriado de Ação de Graças. A Europa reagiu, no entanto, em bloco, assim que o acordo vazou, e disse ao republicano que a proposta era um prêmio à atitude agressiva e desafiadora do presidente da Rússia, Vladimir Putin. “A primeira versão refletia, em muitos aspectos, os objetivos russos nesta guerra e no processo de negociação. Eu a chamaria de ‘acordo de capitulação’, muito longe do que se poderia chamar de paz justa, se é que isso é possível”, avalia Mateusz M. Piotrowski, chefe do Programa das Américas do Instituto Polonês de Assuntos Internacionais, baseado em Varsóvia. A impressão do analista foi compartilhada por muitos líderes europeus. Para o chanceler alemão, Friedrich Merz, “se a Ucrânia perder essa guerra e colapsar, isso teria um impacto na política europeia como um todo, em todo o continente”.
Muitos comparam a situação atual aos momentos que antecederam a Segunda Guerra Mundial, em 1939. O avanço de Putin sobre a Ucrânia teria paralelos com o avanço de Adolf Hitler sobre a Tchecoslováquia e a Polônia. Há 87 anos, a Europa tolerou a agressão de Hitler, com a esperança de que ele parasse por ali. Hoje, não querem protagonizar o que veem como a repetição de um erro do passado. Dois dos pontos da proposta reforçam essa sensação de déjà vu: a perda definitiva das regiões de Donetsk e Lugansk e a redução do efetivo militar ucraniano para um teto de 600 mil militares, o que implicaria a cessão de, aproximadamente, 20% do território ucraniano, justamente a parte invadida e anexada à força pela Rússia em 2022, e na incapacidade permanente de reverter esse arranjo no futuro por meios militares, uma vez que a Ucrânia reduziria seu próprio efetivo, ficaria de fora da Otan e não poderia contar com tropas internacionais de nenhuma espécie estacionada nos limites de suas fronteiras. “Queremos a paz, mas não a paz que seja uma capitulação”, disse o presidente da França, Emmanuel Macron, agregando amplitude e força ao que o colega ucraniano Volodymyr Zelensky havia dito na véspera: se forçada a escolher, a Ucrânia prefere perder um aliado como os EUA a ficar sem uma parte do território. Talvez perca as duas coisas de uma vez.
Além do mais, são perdas que têm ocorrido aos poucos. Desde o retorno de Trump à Presidência, os EUA adotaram uma posição muito mais distante dos aliados militares europeus e mais flexível em relação a Moscou. O momento mais simbólico dessa virada talvez tenha sido a fatídica reunião no Salão Oval da Casa Branca, em fevereiro, quando uma tropa de choque trumpista, encabeçada pelo próprio presidente norte-americano, humilhou Zelensky diante das câmeras. Em seguida, a Casa Branca impôs à Ucrânia um acordo abusivo de exploração de recursos naturais em troca de um apoio militar que, em vez de ser enviado diretamente a Kiev, como acontecia no governo do democrata Joe Biden, passou a ser dado aos aliados da Otan, que se encarregaram de triangular a entrega de armas e munições no front. Com isso, Trump manteve os altos lucros das empresas do setor de defesa e conseguiu, ao mesmo tempo, dizer a Putin que os EUA não mais municiam os ucranianos diretamente, apenas mantêm a cooperação militar com seus parceiros europeus, que assumem por conta própria a responsabilidade de alimentar os inimigos de Moscou.
A declaração, evidentemente cínica, foi parte de um enxoval de agrados que antecedeu o encontro de Trump e Putin no Alasca, em agosto. Na ocasião, o republicano estendeu um enorme tapete vermelho para receber um líder que, até pouco tempo, era inimigo declarado de Washington.
O mais recente plano de paz seria a coroação desse processo de aproximação com Moscou e de distanciamento da Ucrânia e dos europeus. Trump ainda faz um jogo cheio de ambiguidades, pois, mesmo depois do encontro no Alasca, voltou a anunciar novas sanções contra Moscou. Toda essa dança não é mais do que uma tentativa errática de combinar pressão com afagos, com a intenção de produzir um desfecho favorável para um conflito que, durante a campanha eleitoral, havia prometido encerrar em 24 horas depois de voltar à Casa Branca.
Parte dessa confusão de papéis dos EUA deve-se a divisões existentes no próprio governo. Segundo Piotrowski, o secretário de Estado, Marco Rubio, “tem uma abordagem tradicional, vendo a Rússia como uma ameaça, compreendendo as ambições imperialistas de Putin e também entendendo como a Rússia, durante anos, dividiu o povo americano com desinformação e sabotou a posição dos EUA em diferentes partes do mundo, como o Oriente Médio e a América do Sul”. Já o vice-presidente, JD Vance, “pensa haver alguma conexão conservadora entre os Estados Unidos e a Rússia, baseada em crenças religiosas, valores familiares tradicionais etc., e que isso deveria ser a base para a abordagem e a cooperação nos próximos anos”. Por fim, o enviado de Trump, Steve Witkoff, “acredita que o país poderia ganhar bilhões de dólares com comércio, investimento, cooperação energética e minerais críticos logo após o levantamento das sanções” que viriam com o fim da guerra, mas isso, “da perspectiva da economia americana, seria insignificante”.
Enquanto os próprios norte-americanos batem cabeça entre si e com seus aliados europeus, Putin continua a colher vitórias no campo de batalha e a colecionar avanços em terreno. Zelensky, por outro lado, vive um mau momento, marcado não apenas pelo cansaço da própria população, mas por uma série de escândalos de corrupção que erodem seu prestígio e enfraquecem sua posição nas negociações. •
Publicado na edição n° 1390 de CartaCapital, em 03 de dezembro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Putin ri por último ‘
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