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Putin não contava com a reação do Ocidente. Agora, precisa escapar do labirinto em que se meteu
O presidente russo apostava na patente hesitação do presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, na fragmentação europeia e nos interesses econômicos envolvidos


Na nossa última conversa, cerca de duas semanas atrás, Pavlo Sadhoka não escondia o alívio diante de um suposto recuo das tropas russas estacionadas na fronteira leste da Ucrânia. A invasão ainda não havia sido iniciada, subsistia a esperança de uma solução diplomática e o Kremlin ironizava os alertas de uma guerra iminente emitidos pelos serviços de segurança dos Estados Unidos. Presidente da associação dos imigrantes ucranianos em Portugal, às voltas com inúmeros pedidos de socorro de compatriotas, o bancário que vive desde 2006 em Lisboa tinha um motivo adicional de preocupação diante da escalada do conflito: os pais, idosos, viviam em Lviv, a mais importante cidade a oeste da capital, Kiev. Sadhoka traçara uma rota de fuga, um encontro na fronteira polonesa e uma viagem de carro de 40 horas até uma casa emprestada pela família da mulher portuguesa. As notícias “positivas” de 15 dias o levaram, no entanto, a adiar o plano. “Fui um pouco ingênuo”, admite. O encontro protelado aconteceu na terça-feira 1°, por coincidência dia do aniversário de 86 anos do pai de Sadhoka, Olef. Ele, a mulher Natália, de 81 anos, e um neto com deficiência física vagaram por três dias em uma jornada de 60 quilômetros entre Lviv e a fronteira polonesa. Os pais caíram em prantos, diz, ele escondia a emoção, preocupado em resolver a burocracia em meio ao caos ao redor. “Nunca imaginei que viveria uma situação assim”, desabafa o bancário, mais tranquilo, enquanto abastecia o automóvel em um posto de gasolina alemão.
Olef e Natália dão nome e forma aos 2 milhões de refugiados, segundo os cálculos das Nações Unidas, espremidos em estações de trem ou postos de controle rodoviário na Polônia, Romênia, Lituânia, Letônia e Estônia. A multidão cansada, faminta, impaciente, formada por crianças, idosos e mulheres (os homens são obrigados a permanecer na Ucrânia para engrossar as fileiras de batalha), fornece as imagens com as quais a mídia ocidental reitera a fama de mau de Vladimir Putin. A cobertura, que qualquer desavisado poderia confundir com um roteiro da Marvel, tem produzido relatos heroicos e comoventes, apesar de difícil verificação, sobre a resistência ucraniana. Um tanque russo teria atropelado um idoso. Bombas de fragmentação foram lançadas contra civis. Uma alegada conversa despretensiosa no Twitter – “Você vai sair de Kiev? Não, tenho um gato” – inspirou uma série de fotos de soldados com felinos no colo ou nos ombros. Âncoras da tevê estatal em estúdios improvisados em garagens despontam como ícones da liberdade de expressão. A influência da extrema-direita de viés neonazista nos grupos paramilitares ucranianos é relativizada, enquanto o presidente do país, Volodymyr Zelensky, comediante até então visto com desconfiança, tornou-se o “cara”, aplaudido de pé nos mais influentes fóruns internacionais, exaltado por celebridades do show business e, acabe como acabe a guerra, candidatíssimo a personalidade do ano da revista Time e, por que não?, ao Prêmio Nobel da Paz.
O KREMLIN, DE CASO PENSADO OU NÃO, REABILITOU A UNIÃO EUROPEIA E DEU SOBREVIDA À OTAN
A Rússia também tem uma forma peculiar, menos sutil, de registrar os acontecimentos. Por determinação do Kremlin, os meios de comunicação e os russos de forma geral estão proibidos de chamar a invasão pelo nome. Trata-se, impõe Putin, de uma “operação militar especial” para desmilitarizar e “desnazificar” a Ucrânia, argumento que peca pelo excesso no sentido contrário à leniência ocidental: não se pode imaginar que os 44 milhões de ucranianos tenham simpatia pelo nazismo ou apoiem de forma acrítica milícias como o Batalhão Azov, acusado de crimes de guerra na região separatista de Donbas. Moscou não tolera a dissidência. Desde o início da invasão que não pode ser chamada de invasão, mais de mil manifestantes russos foram detidos e fichados por defenderem o fim da invasão que não pode ser chamada de invasão e protestar contra o espírito belicoso de Putin. A rede social Twitter foi suspensa.
A esta altura, quando o conflito completa uma semana sem uma solução à vista, o problema para Putin é um só: a decisão de iniciar um ataque à Ucrânia isolou a Rússia, reduziu a margem de ação de quem estava disposto a negociar as demandas russas, entre elas o incômodo com o risco à segurança interna diante da insistência ucraniana em aderir à Organização do Tratado do Atlântico Norte, a aliança militar ocidental, e deu razão a quem torcia para o circo pegar fogo, a começar pelos Estados Unidos. “Antes da invasão da Ucrânia, a Rússia tinha a vantagem moral, pois suas demandas eram e ainda são legítimas. Mas, ao agredir injustificadamente, colocou a vantagem moral na boca de líderes ocidentais que têm as mãos sujas de sangue”, anota o colunista Aldo Fornazieri.
Ucranianos em fuga ou refugiados nas estações de metrô de Kiev reforçam a imagem de vilão de Putin. Os gatos viraram símbolo da resistência ucraniana e Zelensky, antes personagem de segunda linha, foi alçado à posição de herói mundial – Imagem: Presidência da Ucrânia, Redes sociais, Janek Skarzynski/AFP e Sergey Averin/Sputnik/AFP
Putin apostava, antes do passo em falso, na patente hesitação do presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, na fragmentação europeia e nos interesses econômicos envolvidos: 25% do petróleo e 40% do gás consumidos na UE, quase 50% na Alemanha, são fornecidos pela Rússia. Marcas de luxo, o mercado imobiliário, revendedores de jatos e iates, joalherias, restaurantes estrelados e times de futebol dependem do estilo de vida consumista dos oligarcas, cujo patrimônio no exterior é estimado em 800 bilhões de dólares, e suas relações umbilicais com o Estado. Um dos mais notórios representantes da oligarquia russa, Roman Abramovich, que em meio ao conflito doou a uma instituição de caridade suas ações no time de futebol inglês Chelsea, atual campeão europeu, participa ativamente das negociações de cessar-fogo mediadas pela Bielorrússia.
O presidente russo carregava ainda a memória de suas incursões militares anteriores, principalmente na Geórgia, em 2008, e na Crimeia, em 2014. Nas duas ocasiões, os vizinhos europeus e os EUA assistiram de camarote e se limitaram a divulgar “notas de repúdio”. Desta vez, por motivos diversos, o jogo mudou. A invasão da Ucrânia forneceu, digamos, um novo propósito à União Europeia, cujos princípios estavam em xeque desde a saída do Reino Unido do bloco. De Norte a Sul, de Leste a Oeste, os europeus redescobriram os pontos de união. Protestos populares contra Putin inundaram as ruas das principais cidades e pressionaram governos a fazerem movimentos inesperados e inéditos: a historicamente neutra Suíça prometeu aderir às punições ao sistema financeiro russo, e a Finlândia, apesar das ameaças diretas de Moscou, anunciou o envio de armas à Ucrânia.
A Europa protesta contra a invasão, a Rússia intensifica os ataques em busca de um acordo, que conta com o esforço do bilionário Abramovich – Imagem: Governo de Belarus, Glyn Kirk/AFP e Stefanie Loos/AFP
Estima-se que as sanções econômicas, em sua maior parte impostas pelos países europeus, beirem 1 trilhão de dólares. As medidas incluem o bloqueio do acesso dos bancos russos à plataforma Swift, sistema eletrônico de compensações, o congelamento das reservas em ouro e dólar depositadas no exterior, o confisco de bens do próprio Putin e aliados, o fechamento do espaço aéreo, incluídas aeronaves particulares, e a restrição do comércio exterior. “Provocaremos o colapso da economia russa”, afirmou Bruno Le Maire, ministro das Finanças da França. Exagero retórico? Talvez, mas, de fato, as restrições obrigaram o Banco Central russo a tomar medidas drásticas ante a queda de 30% na cotação do rublo. Os juros subiram a quase 20% e a instituição anunciou um controle de capitais para evitar a fuga de dinheiro. “As condições externas mudaram drasticamente”, informou o BC em comunicado. “Isso é necessário para sustentar a estabilidade das finanças e dos preços e proteger as poupanças dos cidadãos da desvalorização.” As reservas internacionais, estimadas em 600 bilhões de dólares, apesar do bloqueio, dão certa margem de sustentação à aventura militar de Putin. O Ocidente promete aumentar o cerco.
Há ainda o fator China e sua renovada parceria com a Rússia, resumida na declaração conjunta divulgada no início de fevereiro, 15 dias antes da escalada do conflito na Ucrânia, um dos mais importantes documentos geopolíticos do século XXI e um claro desafio ao poder imperial exercido pelos Estados Unidos desde o fim da Guerra Fria. Nas instâncias que ainda restam de negociação, o Ocidente tenta empurrar os chineses para o campo da neutralidade. As mídias europeia e norte-americana comemoram a decisão de Pequim de se abster na votação do Conselho de Segurança da ONU, que só não condenou a invasão russa por causa de uma regra básica: as decisões precisam ser unânimes e a Rússia, como integrante permanente, vetou a resolução. Minimiza, no entanto, as críticas chinesas ao avanço controverso e contínuo da Otan em direção ao Leste, motivo da mobilização do Exército russo. Teria o governo chinês condições de compensar, ao menos em parte, os prejuízos decorrentes das sanções ocidentais? Ou interesse em apoiar um conflito que atrapalha o fluxo comercial no planeta e lança novas incertezas sobre a recuperação econômica global, abalada por dois anos de pandemia? Na terça-feira 1°, Pequim voltou à cena diplomática. Após uma conversa com seu par ucraniano, o ministro das Relações Exteriores, Wang Yi, afirmou que o país está à disposição para integrar os esforços de cessar-fogo e “extremamente preocupado com os danos aos civis”. A China é o destino de 14% das exportações da Ucrânia, maior produtor de grãos da Europa.
O EXÉRCITO RUSSO INTENSIFICOU OS ATAQUES, EM BUSCA DE UM ACORDO QUE NÃO PROLONGUE A GUERRA
Por erro tático ou de caso pensado, Putin também deu uma sobrevida à Otan, organização claudicante e questionada – o francês Emmanuel Macron chegou a decretar a “morte cerebral” da aliança em entrevista à revista inglesa The Economist –, e aos entusiastas do rearmamento da Europa. Ironicamente, militares de carreira têm se sobressaído entre as poucas vozes ponderadas nos debates televisivos e nas análises dos jornais, seja nos Estados Unidos, seja na Europa ou em países não afetados diretamente pelo conflito. Em meio à histeria, generais consultados em diferentes nações relembram os sinais repetidos de desconforto da Rússia e, no fundo, da China com a constante expansão da Otan para além do traçado da antiga Cortina de Ferro, apesar da ingerência desestabilizadora dos EUA em territórios de influência russa (Geórgia, Ucrânia, Cazaquistão) e chinesa (Taiwan). Há quem faça uma pergunta simples: como Washington reagiria se Putin fizesse um acordo com Cuba e decidisse alocar tropas e armas na ilha comunista distante 140 quilômetros da Flórida? A história explica. Em outubro de 1962, a famosa “crise dos mísseis” levou ao extremo o risco de uma guerra nuclear. O suspense durou 17 dias, até o momento em que os navios da União Soviética equipados com projéteis interromperam a viagem a Havana e retornaram para casa. Em sua coluna, Luiz Gonzaga Belluzzo, consultor editorial de CartaCapital, recorre a uma declaração contextualizada do general Sérgio Etchegoyen, ex-ministro do governo Temer: “A Europa estava submetida à paz que interessava à Otan e aos EUA. Não era a paz que interessava à Rússia e a Putin. Ela empurrava os meios da Otan em direção às fronteiras russas, numa ameaça permanente”.
A Otan sofria de “morte cerebral”, antes de Putin reavivá-la – Imagem: OTAN/Arquivo
Quais serão os novos termos? Putin será capaz de impor uma pax russa no seu quintal? Por enquanto, a invasão aguça a histórica desconfiança mútua entre a Rússia e a Europa, sentimento que as décadas recentes de intenso comércio e livre circulação de pessoas haviam amenizado. À direita e à esquerda, excetuados os últimos moicanos dos partidos comunistas europeus, Putin é descrito como ditador e louco. Os pacifistas perderam terreno. A guerra levou a burocracia europeia a recolocar sobre a mesa a proposta de uma nova e agressiva política de segurança. As consequências são conhecidas e ultrapassam o incremento das Forças Armadas: vão do aumento da vigilância interna dos cidadãos ao recrudescimento do controle das fronteiras. Mais paranoia, menos liberdade. O primeiro passo foi dado pela Alemanha. Na segunda-feira 28, o chanceler Olaf Scholz, liderança de um partido, o PSD, que mantém laços históricos e afetivos com a Rússia, antecipou-se ao bloco e anunciou um reforço de 100 bilhões de euros nos investimentos militares deste ano, além da elevação de 1,5% para 2% do PIB do orçamento destinado ao Exército. “A invasão da Ucrânia marca uma virada decisiva na história europeia”, discursou no Parlamento um preocupado Mario Draghi, primeiro-ministro da Itália. “São dias sombrios, mas chegará a hora do diálogo e por isso devemos manter a atenção, aproveitar quando esse momento chegar.”
Quem sabe faz a hora, não espera acontecer, diz aquela velha canção de Geraldo Vandré, que poderia servir de lema a Putin. Após um começo desordenado e seis dias de ações limitadas, os russos intensificaram os ataques a alvos ucranianos entre a primeira reunião de negociações, na segunda-feira 28, e o segundo encontro, na quinta-feira 3. Embora qualquer vida perdida em guerras precise ser lamentada, a incursão russa produziu baixas limitadas até o momento. Os números, imprecisos, falam em 136 civis mortos e 400 feridos. As denúncias, também carentes de comprovação, do uso crescente de armas vetadas pelas convenções internacionais, entre elas bombas de fragmentação, levaram o Tribunal Penal Internacional a abrir uma investigação sobre crimes de guerra que, no fim das contas, poderia resultar na condenação de Putin. A disseminação e a virulência dos ataques alteraram o humor de Zelensky. O “vamos vencer” dos dias anteriores cedeu lugar ao apelo dramático por mais apoio ocidental e a disposição de negociar desde que os russos aceitem um cessar-fogo. “Provem que estão conosco. Provem que não vão nos deixar. Provem que são realmente europeus e então a vida vencerá a morte e a luz vencerá as trevas”, declarou o presidente ucraniano em um discurso ovacionado na sessão de emergência convocada pelo Parlamento europeu na terça 1°. “A UE será muito mais forte conosco.” O apelo emocional não tira Zelensky da sinuca de bico. Alçado à condição de lenda, como se fosse Leônidas, a Ucrânia, o desfiladeiro de Termópilas, e Putin, o Xerxes que ameaça destruir a civilização, resta ao ucraniano o caminho da imolação. Ou, ao menos, o de um acordo que não pareça rendição humilhante nem fuga desesperada.
OS EUA E ALIADOS VISAM MINAR A LIDERANÇA INTERNA DE PUTIN. DERRUBÁ-LO VOLTOU AO RADAR OCIDENTAL
Putin, por sua vez, precisa encontrar um termo entre as suas reivindicações, consideradas inaceitáveis pelo Ocidente, e uma solução rápida que limite os custos deletérios à economia russa. Uma ocupação prolongada seria uma péssima ideia. Basta ver as experiências da União Soviética, nos anos 1980, e dos Estados Unidos no Afeganistão. Forçar a renúncia de Zelensky e a nomeação de um testa de ferro sem apoio da população igualmente manteria o Kremlin preso a um arranjo instável e imprevisível, situação agravada pela decisão do atual governo ucraniano de armar os compatriotas. Uma ou outra medida elevaria, em vez de reduzir, os riscos à segurança russa, razão que, em tese, determina as decisões de Putin. Pior ainda são as ameaças, ou blefe, de uso de bombas atômicas. Levantar a hipótese do apocalipse, de uma “solução final” para a humanidade, fez muito sucesso nos tempos da Guerra Fria, mas o potencial dissuasório de um remake a esta altura é questionável. Mesmo assim, os russos insistem. Em entrevista à Al Jazeera na quarta-feira 2, Sergei Lavrov, ministros dos Negócios Estrangeiros, voltou ao tema. “Biden tem experiência e sabe que não há alternativa às sanções a não ser a guerra mundial. E ela seria nuclear e destrutiva”, afirmou. “A Rússia tem muitos amigos e não pode ser isolada.”
Uma saída possível, em um momento no qual faltam interlocutores confiáveis e lideranças responsáveis e de projeção mundial, estaria em um meio-termo. Ou quase. Zelensky permaneceria no poder e a Rússia não se oporia à adesão da Ucrânia à União Europeia. Em troca, o governo ucraniano desistiria da incorporação à Otan e reconheceria a independência da Crimeia e dos territórios separatistas de Lugansk e Donetsk, na conflituosa região de Donbas. Coincidência ou não, na terça-feira 1°, de forma unânime, o Parlamento Europeu aprovou o pedido de incorporação ucraniana ao bloco, enviado na véspera por Zelensky. É o primeiro passo de um longo e complexo processo de integração que exige brutais concessões financeiras de quem adere. Mesmo se contar com a total boa vontade da UE, os ucranianos precisarão de ao menos uma década para concluir o procedimento. Além disso, a Europa será obrigada a derramar bilhões de euros se quiser impedir um esfacelamento da frágil economia da Ucrânia.
Excluir a Rússia do futebol é uma forma de explorar o descontentamento da população – Imagem: AFP
Encerrar a invasão russa, da maneira possível, será diferente de lidar com as consequências no médio prazo do conflito. Putin enfiou a mão na cumbuca da geopolítica e fez aflorar velhos ressentimentos. Isolado, colado à imagem de inconfiável e perigoso, o ex-agente da KGB que fez de tudo para se manter no poder ao longo de 20 anos aposta alto e ninguém sabe se apresentará garantias para cobri-la. As sanções ocidentais, estendidas aos esportes, às viagens, às redes sociais e à integração financeira dos russos comuns ao mundo globalizado, miram o público interno, o cidadão que ainda apoia ou não se sente seguro para sair às ruas contra o presidente. Derrubar Putin subiu ao topo da agenda dos Estados Unidos e aliados. Por enquanto, o presidente russo não parece abalado pela repulsa mundial. Ao contrário. O “eu” contra “eles” é uma boa arma de propaganda, desde que os adversários continuem longe das fronteiras. •
TESTES DE ARMAS
THE OBSERVER Os novos equipamentos russos em ação
por Peter Beaumont
Os TOS-1, apelidados de Buratinos, foram enviados à Ucrânia – Imagem: Vladimir Astapkovich/Sputnik/AFP
As imagens capturadas por uma equipe da CNN da implantação de um sistema de lança-chamas pesado TOS-1, filmado durante o transporte para a fronteira ucraniana no sábado 26, chamaram mais atenção para quais armas a Rússia tem começado a implantar e quão indiscriminadas elas são.
O TOS-1, apelidado de Buratino – a versão russa do Pinóquio – por seu nariz grande, é um dos sistemas de armas mais temidos do arsenal convencional da Rússia, um sistema de foguetes de lançamento múltiplo montado no chassi de um tanque T-72, capaz de disparar foguetes termobáricos que usam oxigênio do ar circundante para gerar uma explosão de alta temperatura.
Implantado pela primeira vez pelos militares soviéticos no Afeganistão, o TOS-1 foi usado mais recentemente na Síria. A implantação do TOS-1 ocorre no momento em que forças russas e aliados separatistas usaram o sistema indiscriminado de foguetes de lançamento múltiplo BM-21 “Grad” durante a invasão da Ucrânia, inclusive no leste e no sul do país. Eles parecem ter sido implantados em torno de Kharkiv, onde circularam imagens de um BM-21 destruído e de um soldado russo morto.
O site investigativo Bellingcat também coleta evidências do uso suspeito de foguetes Uragan e Smerch e suas submunições nos combates atuais na Ucrânia.
O uso de sistemas de foguetes de lançamento múltiplo e de mísseis de cruzeiro contra áreas civis durante a invasão já foi condenado. “Os militares russos demonstraram um desrespeito flagrante pelas vidas civis ao usar mísseis balísticos e outras armas explosivas com efeitos de longo alcance em áreas densamente povoadas”, disse Agnès Callamard, secretária-geral da Anistia Internacional.
Ela alertou: “Alguns desses ataques podem ser crimes de guerra. O governo russo, que alega falsamente usar apenas armas guiadas com precisão, deve assumir a responsabilidade por esses atos”.
Embora muitos dos sistemas de armas usados até agora durante a invasão russa tenham sido amplamente convencionais, incluindo versões do tanque T-72 e veículos blindados de combate BMP3, além de helicópteros Mi8 e Ka-52, surgiram preocupações sobre o uso pelos russos de mísseis de cruzeiro Kalibr, especialmente contra áreas construídas.
Houve relatos de Kalibrs, que podem ser disparados de navios, aeronaves e submarinos, usados contra Kiev e também contra a cidade portuária de Odessa, no sul.
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.
O SENHOR DA GUERRA
THE OBSERVER As aventuras militares de Putin
por Simon Tisdall
A invasão da Geórgia serviu de treinamento a Putin – Imagem: Sean Gallup/Getty Images/AFP
A carreira do presidente russo está impregnada de sangue. Mas a invasão da Ucrânia é mais ambiciosa e arriscada do que qualquer coisa que Vladimir Putin tentou no passado. Eis o histórico.
Segunda guerra da Chechênia, 1999-2000
Em setembro de 1999, um mês depois de Putin tornar-se primeiro-ministro, explosões de bombas em prédios de apartamentos em Moscou e duas outras cidades mataram mais de 300 cidadãos. Putin culpou os separatistas chechenos (que negaram). Ele ordenou o bombardeio aéreo de sua capital, Grozny, dando início à segunda guerra chechena.
Alexander Litvinenko, ex-agente do Serviço Federal de Segurança (FSB) assassinado em Londres em 2006, alegou que o órgão espião plantou as bombas na cidade, com a conivência de Putin, para ajudar a levá-lo à Presidência. Isso foi motivo suficiente para o seu envenenamento. A guerra deixou até 50 mil mortos ou desaparecidos, na maioria civis.
Invasão da Geórgia, 2008
Como em Donbas hoje, forças insurgentes nas regiões separatistas georgianas da Ossétia do Sul e Abkhazia lutaram contra forças do governo em agosto de 2008. Quando o presidente da Geórgia, Mikheil Saakashvili, enviou tropas para restaurar a ordem, Putin mandou suas forças apoiarem os separatistas (o que já faziam). Uma invasão russa em larga escala do território georgiano indiscutível ocorreu no que Putin chamou de operação de “reforço da paz”.
Invasão da Ucrânia, 2014
Novamente sob o pretexto de defender russos étnicos perseguidos, as forças sob a direção de Putin ajudaram a tomar o controle de partes das províncias de Lugansk e Donetsk, no leste da Ucrânia (parte da região de Donbas), em 2014. As duas entidades separatistas declararam sua independência neste mês. Putin também anexou a Crimeia. Estima-se que 14 mil morreram nos combates que levaram ao conflito atual.
Síria, 2015 – presente
O fracasso de Barack Obama em intervir na guerra civil da Síria após um ataque químico em Ghouta em 2013, que violou a “linha vermelha” do presidente dos Estados Unidos, deixou uma brecha para Putin. Com a intenção de explorar a fraqueza norte-americana, reforçando seu aliado, o presidente da Síria, Bashar al-Assad, e fortalecer a posição estratégica da Rússia no Oriente Médio, Putin enviou aviões e forças especiais para a Síria em 2015. Elas ainda estão lá. A Rússia agora tem uma base naval permanente em Tartus, no Mediterrâneo.
Cazaquistão, 2022
No que hoje parece um ensaio geral para a invasão da Ucrânia, Putin enviou tropas ao Cazaquistão, outra ex-república soviética, em janeiro. Mas, em vez de derrubar o regime, sua missão era ajudar os governantes do país a reprimir os protestos pró-democracia provocados por dificuldades econômicas e corrupção. Em estilo familiar, Putin novamente descreveu as tropas como “mantenedoras da paz”. Por seus padrões, a operação foi relativamente sem sangue.
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1198 DE CARTACAPITAL, EM 9 DE MARÇO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Putin contra o mundo”
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