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Putin está cada vez mais convencido do acerto da invasão à Ucrânia

Sua desconfiança do Ocidente e a tendência à teoria da conspiração os tornam aliados naturais do presidente em guerra

Clube fechado. Bortnikov, diretor da FSB, antiga KGB, é um dos poucos convidados para os encontros semanais do comitê de segurança de Putin - Imagem: Governo da Rússia e Sefa Caracan/Anadolu Agency/AFP
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Mesmo para um líder tão enclausurado quanto Vladimir Putin, seria impossível ignorar a torrente de más notícias que vem da Ucrânia. O objetivo de um nocaute contra Kiev foi abandonado, e a Rússia enfrenta as sanções mais duras já aplicadas a uma superpotência. Foi a falta de informação de um grupo de asseclas que levou o líder russo por esse caminho? É isso o que a inteligência dos Estados Unidos e da Europa argumentam. Dizem que Putin agora está furioso com seus subordinados, em particular com a liderança militar que o colocou nesta confusão. “Seus principais assessores têm muito medo de dizer a verdade”, afirma Kate Bedingfield, diretora de comunicações da Casa Branca.

A reação do Kremlin era previsível. “Parece que nem o Departamento de Estado nem o Pentágono sabem o que realmente acontece no Kremlin”, respondeu Dmitry Peskov, porta-voz do governo. “Não entendem o presidente Putin. Não entendem o mecanismo de tomada de decisões. Não entendem o nosso estilo de trabalho.”

Poucos cidadãos podem alegar que entendem neste momento. “Pelo que sei, Putin conversa com um círculo muito reduzido”, afirmou Farida Rustamova, jornalista russa independente que relatou o clima entre as autoridades desde o início da guerra. “Apenas um punhado de assessores tem permissão para vê-lo pessoalmente, e eles precisam se manter a distância. Poucos têm acesso por telefone a ele. Mas esse acesso é de mão única. Só Putin os contata, e não o contrário.”

A cada semana, o presidente russo faz uma videochamada com seu conselho de segurança, grupo de linha-­dura e ­tecnocratas que se tornou seu gabinete de guerra desde a invasão da Ucrânia. Entre eles estão os siloviki, chefes de segurança mais bem situados para capturar os ouvidos de Putin. O círculo inclui Nikolai Patrushev, ex-oficial da KGB que o presidente conheceu em ­Leningrado na década de 1970, o chefe do FSB, ­Alexander Bortnikov, também conhecido há quatro décadas, o ministro da Defesa, ­Sergei Shoigu, e Sergei Naryshkin, chefe de inteligência externa de Putin.

Sua desconfiança do Ocidente e a tendência à teoria da conspiração os tornam aliados naturais do presidente em guerra. Mas mesmo eles pareciam estar seguramente sob controle do chefe durante reunião televisionada dias antes da invasão, uma peça de teatro político que deixou ­Naryshkin gaguejando, enquanto ­Putin o intimidava para “falar claramente”.

“Está claro que é um sistema extremamente centralizado que ficou ainda mais centralizado durante a guerra”, avalia Vladimir Gelman, professor de política russa na Universidade de Helsinque. “O Kremlin é como o sistema solar, com Putin sendo o sol e todos os planetas com diferentes órbitas ao seu redor. Na reunião do conselho de segurança… estava-se realmente dizendo quão pouca influência têm os integrantes.”

Ninguém tem autorização para telefonar ao presidente russo. Só podem esperar pelo contato

Fora dessas reuniões, que quase sempre são realizadas a portas fechadas, gente bem informada diz que se espera até que Putin entre em contato. Isso inclui o bloco econômico do governo, como o primeiro-ministro Mikhail Mishustin e a presidente do Banco Central, ­Elvira Nabiullina, disse Rustamova. E também incluiria Shoigu e o chefe do Estado-Maior do Exército, Valery Gerasimov.

Os dois homens desapareceram da visão pública durante quase duas semanas no mês passado, provocando rumores de que os chefes da defesa tinham sido punidos pelo início caótico da guerra na Ucrânia. Em um episódio extremamente embaraçoso, o Ministério da Defesa foi forçado a admitir que enviou recrutas para missões de combate depois que alguns tinham sido capturados e mortos na Ucrânia. Putin havia negado anteriormente que houvesse recrutas na invasão.

Apesar dos sinais de que o presidente estava irritado com Shoigu, analistas opinaram que é improvável que ele demita o chefe da defesa no meio de uma grande operação militar. “Shoigu tornou-se completamente indispensável, e foi assim que ele voltou”, disse Andrei Soldatov, autor que escreveu extensamente sobre os serviços de segurança russos. “Quem poderia substituí-lo? Ele é o terceiro ou segundo político mais popular do país.”

O líder russo valoriza a lealdade e, como resultado, depois de duas décadas no poder seu gabinete está povoado de ­leais. “Putin gosta de repetir a frase ‘não há mais ninguém apto a fazer esse trabalho’”, disse Tatyana Stanovaya, fundadora da empresa de análise política R.Politik. “Shoigu é o homem dele. Ele tem… falhas no trabalho, deficiências, erros. Mas alguém fará um trabalho melhor? Então eu não tiraria nenhuma conclusão de que Putin está arrancando os cabelos porque Shoigu o traiu e o decepcionou.”

Segundo círculo. Nabiullina, a presidente do Banco Central, precisa deixar recado para ser atendida. Abramovich participou de duas reuniões de negociação de paz com representantes ucranianos – Imagem: Banco Central da Rússia, Peter MacDiarmid/Getty Images/AFP e Sputnik/AFP

Os críticos apontaram as detenções noticiadas de vários oficiais de alto escalão do FSB e a demissão de um general graduado da Rosgvardia, ou Guarda Nacional, como evidência de um cisma crescente em relação à guerra ou possível expurgo por sua má execução. Especialistas disseram, no entanto, que a maior parte das fileiras do Kremlin parece de pé, com poucas mudanças discerníveis entre os conselheiros de Putin, enquanto ele busca consolidar seu apoio sob forte pressão do Ocidente. “Acho que o presidente está insatisfeito com o desempenho”, disse Soldatov. “Mas isso não significa que aqueles de dentro estejam prontos para um golpe de Estado ou algo parecido. Isso é excesso de otimismo.”

Os países ocidentais sancionaram oligarcas vistos como leais a ­Putin, apostando que ele pode ouvir os homens do dinheiro que detêm bilhões em ativos. Entre os atingidos está Roman ­Abramovich, o bilionário ex-dono do time de futebol inglês Chelsea, que inesperadamente apareceu em negociações informais em Istambul e Kiev no mês passado, onde ele e dois integrantes da equipe ucraniana alegaram que foram envenenados. Os próprios oligarcas afirmam, porém, que há anos não têm os ouvidos do Kremlin, há muito expulsos pelos ex-falcões da KGB e outros fiéis que ­Putin instalou nos últimos 20 anos. “Não adianta gente como eu tentar falar com o Kremlin”, disse a The Observer um oligarca que conhece Putin desde os anos 1990. “Não funciona assim. Não sejamos ingênuos. Não temos acesso há anos.”

Os líderes empresariais disseram que foram mantidos no escuro sobre a invasão até depois que ela começou, quando Putin convocou muitos deles para uma reunião para exigir lealdade. “Esse conflito, obviamente, não foi discutido com o empresariado”, prosseguiu o oligarca. “Apenas nos disseram no dia seguinte à invasão que tudo ficaria bem, mas que não havia escolha. Não é um debate ou uma discussão. O sistema desenvolveu-se ao longo dos anos. É claro que havia blocos diferentes no início, mas depois da Crimeia ficou claro que não havia lugar para a ala chamada de mais liberal. E a pandemia deixou a cúpula mais isolada.”

Alguns desses ex-assessores liberais deixaram o país. Anatoly Chubais, o chefe de privatizações de Boris Yeltsin, que se transformou em um executivo apoiado pelo Estado e depois assessor de Putin em questões ambientais, renunciou e trocou a Rússia pela Turquia no mês passado. Arkady Dvorkovich, ex-assessor econômico do Kremlin, deixou o cargo de chefe da Fundação Skolkovo sob pressão do governo, depois de criticar a guerra em uma entrevista. E Alexei Kudrin, outro importante conselheiro liberal que conhece Putin há décadas, também o aconselhou a abandonar a invasão, disse Rustamova. Segundo suas fontes, Kudrin falou com Putin logo após o início da guerra. Durante a conversa, ele “avisou Putin sobre as consequências da guerra: que a economia retrocederia ao início dos anos 1990, e que isso poderia levar à instabilidade social. Mas não houve reação de Putin a tudo isso. Putin tem a mesma resposta para todos os que estão preocupados com esta guerra: a Rússia não tinha outra opção”.

Os oligarcas russos não têm a influência no governo imaginada pelo Ocidente

Tudo isso contraria a ideia de que ­Putin foi enganado sobre a escala da guerra – na verdade, ele optou por não ouvir mais. A competição natural entre os assessores, mesmo entre os linha-dura, também significa que eles provavelmente estariam dispostos a apontar os erros dos outros. “É impossível esconder tudo”, disse Stanovaya. “Sabemos que há uma concorrência séria dentro dos serviços de segurança. Então, se o exército cometer um erro, sabemos que há muitos personagens prontos para relatar isso, desde Ramzan Kadyrov (líder da Chechênia) ao FSB. Então eu não diria que Putin está mal informado agora. Mas é possível que ele receba as informações atrasadas.”

À medida que a guerra continuou, esse nacionalismo só se fortaleceu. ­Kadyrov, o líder ditatorial da Chechênia que brigou com os serviços de segurança da Rússia, também criticou fortemente as negociações lideradas pelo conselheiro do Kremlin, Vladimir ­Medinsky. Depois que Medinsky anunciou que a Rússia retiraria algumas forças de Kiev, ­Kadyrov disse que “Medinsky cometeu um erro, fez uma redação incorreta… E se você acha que (Putin) desistirá do que ele começou, do modo como nos é apresentado hoje, não é verdade”.

A boataria, onde o desaparecimento temporário de uma figura pública como Shoigu pode levar rapidamente a previsões açodadas de um expurgo ou golpe, também tem um momento próprio durante a invasão. “Dada a opacidade do regime, a intriga sobre os golpes palacianos torna-se uma dinâmica em si, que pode se afastar completamente do que está acontecendo em campo”, disse Noble. “Não é uma mera tempestade numa xícara de chá que está sendo imaginada pelos observadores ocidentais. É altamente plausível que essas sejam precisamente as conversas, os rumores e sussurros que estão ocorrendo em Moscou.” •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1203 DE CARTACAPITAL, EM 13 DE ABRIL DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Conselho de guerra “

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