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Projeto de ditador

Nayib Bukele explora sua alta popularidade para se perpetuar no poder e minar as instituições

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Ninguém resiste a Bukele – Imagem: Gabinete da Presidência de El Salvador
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A construção do maior presídio do mundo, extinção de cidades, controle dos poderes Legislativo e Judiciário, aliança com militares e polícias, amplo aparato comunicacional nas redes sociais e discurso anticorrupção. Esse pacote faz de Nayib Bukele, presidente de El Salvador, o mais popular líder latino-americano, caso as pesquisas possam ser levadas a sério. Sua aprovação, segundo levantamento do jornal Prensa Gráfica, passa de 90%, apesar das denúncias de violação dos direitos humanos, as derrapadas na economia e o perfil cada vez mais autocrático de sua gestão.

Oficialmente anunciado como candidato à reeleição pelo partido Novas Ideias, em clara afronta à Constituição do país, que proíbe a recondução à Presidência da República, Bukele faz planos para um segundo mandato, com base em uma decisão da Suprema Corte criticada por setores que temem a deterioração ainda maior das regras democráticas. Eleito em 2018, em uma disputa marcada pela derrota histórica dos partidos tradicionais Aliança Republicana Nacionalista, de direita, e Frente ­Farabundo Martí de Libertação Nacional, de esquerda, Bukele aproveitou o vácuo para amealhar poderes nunca antes experimentados por um mandatário desde o fim da ditadura, em 1979. “O problema é a serviço de quem está esse poder e como se exerce a governabilidade”, afirma Nídia Diaz, experiente ex-deputada da FMLN, uma das negociadoras dos acordos que puseram fim às guerrilhas nos anos 1990. “Bukele é um neoliberal aliado da oligarquia empresarial que domina a revolução tecnológica, investindo milhões em marketing e com seguidores em toda a região. Seu regime tem características fascistas, persegue opositores e movimentos sociais, não há transparência.”

Desde o ano passado, o governo opera em um estado de exceção aprovado pelo Congresso, onde Bukele controla uma esmagadora maioria de deputados. No período, El Salvador tornou-se o país com o maior contingente de presos em termos proporcionais. O encarceramento em massa serviu para justificar uma obra na cidade de Tecoluca avaliada em 70 milhões de dólares, o Centro de Confinamento do Terrorismo, maior presídio do planeta, com capacidade para 40 mil detentos. “Em 2022, quando supostos integrantes de facções assassinaram mais de 80 salvadorenhos, as forças de segurança capturaram 70 mil ‘suspeitos’. Há centenas, milhares de inocentes, cujo crime era viver em comunidades pobres ou ter tatua­gem”, denuncia Miguel Montenegro, diretor da Comissão de Direitos Humanos.

Apesar das denúncias de violação de direitos humanos e da economia em frangalhos, o presidente tem amplo apoio

Segundo a jornalista Claudia ­Espinoza, especializada na cobertura do tema, as denúncias de violações dos direitos humanos não sensibilizam a maioria da população. “Falo com pessoas que têm familiares presos e elas continuam simpáticas a Bukele. Seus apoiadores não acompanham os meios de comunicação tradicionais e reproduzem o discurso de ódio gerado pelo oficialismo. Há provas de que o governo negociou com facções, mas como a delinquência diminuiu e não se veem mais criminosos nas ruas, não se questionam os métodos.”

O governo e seus apoiadores negam o pacto com o crime organizado e ressaltam a redução dos homicídios e as apreensões a partir do plano de controle territorial. O modelo é elogiado por líderes da extrema-direita regional. A Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado da Câmara dos Deputados do Brasil realizou uma audiência em março deste ano com Gustavo Villatoro, ministro da Justiça de El Salvador. No evento, Villatoro detalhou o plano de segurança implementado em 2019. “A principal força de nosso governo é a segurança. Gente que nunca havia escutado sobre o nosso país agora nos conhece, graças a Bukele e às ações nessa área. Seu poder foi dado pela população por meio de eleições livres. Ele é jovem, próximo ao povo e caberá aos eleitores decidirem sobre sua reeleição”, defende o deputado ­Guilermo Gallegos. Pesquisas de opinião, diz o parlamentar, projetam 70% de votos no atual presidente se a eleição fosse hoje.

A sensação de segurança não se reflete na economia. Enquanto Bukele investia no mercado de bitcoins e perdia milhões de dólares do Tesouro, a fome e a vulnerabilidade social cresciam e atingiam quase um terço dos cidadãos. Publicação da Oficina Nacional de Estatísticas e Censos revelou que 1,8 milhão de salvadorenhos vive na pobreza, número mais elevado dos últimos quatro anos. “À parte o fato de os cidadãos confundirem militarização com segurança, a situação econômica gera ressentimentos. Houve aumento do salário mínimo (fixado em, aproximadamente, 365 dólares), mas a inflação castiga as famílias”, avalia o professor Romeo Miguel. Quando se considera apenas a cesta básica, houve alta de 14% nos preços no ano passado.

A crise econômica continua a empurrar milhares de imigrantes rumo aos Estados Unidos. Segundo as autoridades norte-americanas, cerca de 200 mil salvadorenhos tentaram ingressar ilegalmente no país nos últimos dois anos. Mesmo assim, há quem defenda a atuação de Bukele nessa área. “Foram dadas oportunidades para muitos jovens trabalharem no Estado, com bons salários. Antes só indicados pelos partidos ocupavam esses postos”, assevera a advogada Gabriela Herrera, que atua no combate ao crime organizado. Ela também elogia as medidas de combate à pandemia de Covid-19 e a reforma administrativa em curso. Mais de 200 municípios foram fundidos a cidades maiores e inúmeros cargos públicos acabaram extintos. Das 262 localidades, restaram 44. A radical reestruturação baseou-se em um estudo questionado e ampliou a centralização do poder em uma manobra que o cientista social Jaime Quintanilla classifica de “venda de um autoritarismo eficiente”.

O redesenho levanta dúvidas sobre a representatividade das regiões nas eleições de 2024, que terão outras novidades, entre elas o voto eletrônico para quem vive no exterior. A fragilizada oposição preocupa-se ainda com a transparência e a legitimidade do processo. Os salvadorenhos parecem, no entanto, encantados com o vigor e a “coragem” de Bukele, genuíno encantador de serpentes. •

Publicado na edição n° 1269 de CartaCapital, em 26 de julho de 2023.

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