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Primavera iraniana

Determinadas a desafiar a polícia moral e o cerco online, mulheres recorrem até a bilhetes em papel para organizar protestos contra o governo

Revolta. Os atos desencadeados pela morte de Mahsa Amini se converteram em ampla campanha antigovernamental - Imagem: Getty Images/AFP
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As mensagens, impressas em pedaços de papel, foram jogadas nas portas das casas, no Irã, durante a noite por manifestantes decididos que uma repressão online não impediria seu movimento. “A República Islâmica está caindo. Junte-se ao povo”, dizia uma nota distribuída na cidade de Rasht, ao norte do país. No sul, em Ahvaz, os organizadores deram um endereço e um horário para o protesto, com um apelo mais amplo à ação. “Se você não puder vir, espalhe a mensagem para outras pessoas”, pedia aos leitores.

Horas depois, um vídeo de Ahvaz mostrou mulheres dançando na rua, com os cabelos descobertos e agitando os lenços no ar, enquanto uma multidão nas calçadas aplaudia. Duas semanas após uma onda de protestos contra o governo em todo o país, as autoridades de Teerã parecem cada vez mais assustadas com a escala e a determinação da revolta popular contra seu governo, e cada vez mais implacáveis em suas tentativas de esmagá-la.

As equipes de segurança usaram munição real e força bruta contra os manifestantes e inundaram o centro de Teerã com a tropa de choque. Dezenas de pessoas foram mortas – os números fornecidos por grupos de direitos humanos e pela mídia estatal iraniana variam entre 40 e 83. Ao menos 1,5 mil mulheres foram presas, segundo a agência Associated Press.

As autoridades tentaram impedir o planejamento e a divulgação dos protestos com repressão online, banindo aplicativos de rede social, restringindo o acesso à internet e tentando silenciar celebridades que apoiam o movimento. Um jogador de futebol foi preso, a estátua de outro foi derrubada. A campanha de terror e obstrução até agora dispersou os protestos, mas não conseguiu detê-los. Os manifestantes iranianos estão determinados a continuar saindo.

“Você vê algo sobre uma reunião ­(online) e depois vai lá, mas não tem certeza se voltará para casa vivo”, comenta Negar*, uma manifestante de Teerã que falou com o Observer por telefone. Ela destacou que uma revolução levou os atuais governantes do Irã ao poder muito antes da era digital. “As pessoas decidiram o que têm de fazer. Basta lembrar que não havia internet em 1979 e as pessoas fizeram o que desejavam.” Alguns manifestantes definem planos para uma nova reunião antes de se dispersar, ou têm vários locais de protesto conhecidos.

“Dizemos um ao outro onde e quando nos reuniremos na próxima vez. Não precisa organizar nada”, afirma ­Nosheen*, moradora do norte de Teerã. Outros estão cantando nos tetos das casas, onde as ruas parecem muito perigosas, ou usando redes particulares VPN para evitar o controle pelo governo do fluxo de informações digitais.

“Justiça, liberdade e hijab opcional”, gritaram alunas da Universidade de Teerã, na capital

Os protestos foram desencadeados pela morte sob custódia de Mahsa Amini, mulher curda de 22 anos, após sua prisão pela polícia moral. Mas eles se transformaram numa campanha antigovernamental mais ampla, liderada por mulheres e focada no controle de suas vidas, alimentada por um descontentamento maior. É um movimento nutrido online, em que celebridades iranianas e estrangeiras tuitam e usam hashtags de apoio, e imagens poderosas levam as mensagens dos manifestantes muito além de suas fronteiras.

Uma fotografia que se tornou viral mostra uma jovem de pé ao lado do túmulo de sua mãe, morta nos protestos. Sua cabeça está raspada e descoberta, e ela segura mechas de cabelos soltos, cortados em luto e oposição. As mulheres lideraram os protestos, com seus corpos nas ruas e nos bastidores. “Fiquei um pouco assustada no começo, mas, quando vi tantas mulheres nas ruas, senti coragem para continuar”, diz Negar, veterana de outros movimentos de protesto que está na casa dos 40 anos. “Na maior parte do tempo, os homens apenas observam. As mulheres organizam e fazem tudo. É completamente diferente dos tempos anteriores. As mulheres estão no comando. Elas estão liderando.”

A resposta das forças de segurança incluiu a derrubada de uma estátua da lenda do futebol iraniano Ali Karimi, depois que ele usou suas redes sociais para apoiar os protestos e compartilhar dicas práticas sobre como evitar controles na internet. Os manifestantes responderam pintando seu nome no pedestal vazio. No sábado, estudantes universitárias desafiaram as ordens de voltar às salas de aula. Na Universidade de Teerã, elas gritaram “Justiça, liberdade, hijab opcional”, antes que as forças de segurança entrassem em confronto com elas. Na Universidade de Isfahan, um vídeo compartilhado nas redes sociais aparentemente mostrava uma mulher incendiando seu lenço na cabeça e, em Mashhad, multidões gritavam “os alunos morrerão, mas não aceitaremos humilhação”.

O centro de Teerã estava quieto sob o olhar atento de uma forte presença policial, mas os protestos continuaram em outras partes da cidade. “Todos os policiais estão mascarados e às vezes, quando saio, sinto que estou andando num ­videogame de guerra”, comenta uma moradora de Teerã. “Eles estão tentando assustar as pessoas para que não se reúnam para protestar, mas elas não se importam e continuam se reunindo.”

Um protesto no sábado foi realizado não muito longe da residência oficial do líder supremo, aiatolá Ali Khamenei. O grupo estava perto o suficiente para que, se ele saísse, o vento pudesse levar aos seus ouvidos os cantos de mulheres determinadas a lutar contra as probabilidades.

“Vamos continuar até que eles matem cada uma de nós”, acrescenta Nosheen. “Eles atiraram gás lacrimogêneo diretamente contra nós na outra noite. Meus olhos estavam queimando, não consegui dormir a noite toda, mas ainda assim saí na noite seguinte, com lágrimas e dor nos olhos.” •


*Os nomes foram alterados por motivos de segurança.
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1229 DE CARTACAPITAL, EM 12 DE OUTUBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Primavera iraniana”

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