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Primárias mostram que rejeição a Macri é maior que o antikirchnerismo

Diante da surra nas urnas, o atual presidente, seus aliados e os mercados recorreram ao velho terrorismo

Chapa de Alberto Fernández e Cristina Kirchner derrotou o presidente Mauricio Macri. Foto: Frente de Todos Media
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Resta a Mauricio Macri, aos mercados e a Jair Bolsonaro, que, contra todas as evidências em contrário, se considera uma liderança influente na América do Sul, apelar para o batido terrorismo eleitoral. Na segunda-feira 12, dia seguinte à surra levada pelo presidente argentino nas eleições primárias, a ressaca foi intensa. Logo pela manhã, o governo anunciou a elevação dos juros para asfixiantes 74% ao ano, na tentativa de conter a alta do dólar e a fuga de capitais. Na quarta 14, ainda desnorteado, Macri mudou de rumo e aderiu ao “populismo”: decretou um aumento de 25% no salário mínimo e o congelamento do preço dos combustíveis. O que dirão os ortodoxos?

Enquanto isso, Bolsonaro, do lado de cá da fronteira, insinuava que uma vitória peronista provocaria uma crise política e social de proporções venezuelanas e ameaçava liquidar o Mercosul, caso o resultado das primárias se confirmar em 27 de outubro. “O Rio Grande do Sul vai virar Roraima”, deblaterou. Os aliados de Macri poderiam pedir licença ao rei Juan Carlos da Espanha e repetir o conselho: “Por qué no te callas?” Dada a sua rejeição entre os argentinos, o ex-capitão é um cabo eleitoral ao avesso. Toda vez que abre a boca para defender Macri, acaba por jogar água no moinho da chapa Alberto Fernández e Cristina Kirchner, apoiados por Lula. “Bolsonaro falou de mim? É uma honra”, brincou Fernández.

Com ou sem pressões externas, a reeleição de Macri parece uma causa perdida, como praticamente admitiu o próprio em um discurso na noite de domingo. “Tivemos um resultado ruim e isso nos obriga a ampliar os nossos esforços para continuar as mudanças”, afirmou, entre desolado e aturdido. “Dói não ter obtido todo o apoio que esperávamos.” 

Mas o que exatamente esperava o presidente argentino? Em quatro anos de mandato, o empresário esculpiu um desastre econômico. À exceção de um leve espasmo de crescimento em 2017, a prometida prosperidade passou longe das casas e empresas. O PIB encolheu em 2016 e 2018 e segue pelo mesmo caminho em 2019: prevê-se uma queda de 1,2%. A inflação aproxima-se perigosamente dos 50%, segundo os dados oficiais, e o desemprego de 9,2% tende a aumentar diante da alta nas taxas de juro, medida recessiva que coloca o país à beira da insolvência. Sem alternativas e sem reservas cambiais suficientes para evitar ataques especulativos, Macri viu-se obrigado a passar o pires no Fundo Monetário Internacional e submeter-se à velha fórmula de corte de gastos públicos e privatizações. Os 56 bilhões de dólares prometidos pelo FMI foram, no entanto, insuficientes para acalmar os investidores e nem de longe compensaram os efeitos nefastos da contração sobre a produção, a renda e o consumo.

Diante dos resultado medíocres de sua gestão, sobrou a Macri, com o beneplácito do Judiciário e das corporações de mídia, apostar na demonização da antecessora, Cristina Kirchner. Funcionou por um tempo. Os resultados das primárias indicam, no entanto, o fracasso dessa estratégia e estabeleceram a exata dimensão do descontentamento dos argentinos: embora a elite e parte da classe média urbana tenham aversão a Kirchner, alvo de uma investigação cujos métodos se assemelham à Operação Lava Jato, a falta de perspectiva do país sob Macri pesou mais. Até o “choque de realidade” proporcionado pelas urnas, investidores e analistas projetavam uma vantagem pequena da oposição, de 5 a 6 pontos porcentuais, nas primárias, um primeiro turno apertado em outubro e uma virada do atual presidente em um eventual segundo. Daí o “desespero” das finanças. Se nada de surpreendente acontecer em um mês e meio – tudo é possível na trágica, à sua maneira, história política argentina –, são exponenciais as chances da dupla Fernández e Cristina vencer em uma só tacada. “Não vamos restaurar um regime, vamos criar uma nova Argentina, terminar com este tempo de mentiras. O conceito de vingança, divisão e qualquer outra coisa acabou. Nunca fomos loucos no governo. Vamos arrumar os problemas que os outros geraram”, promete Fernández. 

Macri produziu uma tragédia econômica

Ao contrário do Brasil, onde os partidos impõem sua lista de candidatos, na Argentina a escolha cabe aos cidadãos. As primárias definem quais legendas e políticos vão concorrer no primeiro turno. É preciso conquistar ao menos 1,5% dos votos – o que tirou do páreo mais da metade dos dez postulantes à Casa Rosada. Em 27 de outubro, os argentinos vão renovar dois terços do Congresso, o comando das prefeituras e de alguns estados (nem todos os governos provinciais estarão em disputa), além de escolher o novo presidente. 

Os 16 pontos de vantagem peronista não representam apenas a reprovação ao governo Macri. Eles coroam a estratégia de Cristina Kirchner e da frente de oposição. O antikirchnerismo assemelha-se, em violência, boçalidade e recorte de classe, ao antilulismo e ao antipetismo no Brasil. Some-se à rejeição o risco real de a ex-presidenta ser condenada no processo conhecido como “cadernos da corrupção”, uma denúncia com tons rocambolescos que envolve até o suposto enterro de dinheiro vivo ao estilo Pablo Escobar. Ciente das barreiras à sua candidatura, da animosidade de uma porção dos eleitores e do lawfare judicial, Cristina abriu mão da cabeça de chapa e aceitou unir-se a um ex-assessor com quem vivia às rusgas. Alberto Fernández é um moderado, agregador  e, tudo indica, conseguiu a façanha de reduzir a rejeição à sua companheira sem afastar os fiéis eleitores kirchneristas. 

Diante da surra nas urnas, o atual presidente, seus aliados e os mercados recorreram ao velho terrorismo

Enquanto o peronismo surfa no descontentamento popular, a campanha governista continua a cavar a própria cova. A alta de juros da segunda 12 tende a corroer ainda mais as chances eleitorais de Macri. O atual presidente obteve 33,1% dos votos nas primárias, contra 49,2% da dupla Fernández-Kirchner. Em terceiro, com 8,3%, ficou a frente liderada pelo economista Roberto Lavagna, ex-ministro de Néstor Kirchner. Embora tenha deixado o governo do marido de Cristina de forma nada amigável e se esforce para manter distância do peronismo, Lavagna é um duro e fundamentado crítico da atual administração. Ninguém espera que seus eleitores optem em peso por Macri. Os demais candidatos, incluída uma aliança de esquerda não ligada ao peronismo, amealharam perto de 6%.

Mesmo na hipótese menos provável – uma migração absoluta dos votos dos demais concorrentes para Macri –, as chances de vitória em primeiro turno da oposição continuam amplas. Na Argentina, bastam 45% dos votos totais ou uma margem de 10 pontos porcentuais superior à soma dos demais concorrentes para um candidato ser declarado vencedor. Não por menos, o craque Maradona, peronista como o papa Francisco, não se conteve nas redes sociais. Após afirmar que Macri governa o país como um parque de diversões, o ex-jogador comemorou: “Vamos a volver”.

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