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Portugal dá a largada em eleições legislativas históricas marcadas por extrema direita que seduz brasileiros

No Brasil, um dos principais cabos eleitorais do ‘Chega’ é o ex-presidente Jair Bolsonaro

André Ventura, líder do partido de extrema direita "Chega". Foto: Patricia de Melo Moreira
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As eleições legislativas em Portugal acontecem oficialmente daqui a uma semana, mas as urnas já se encontram abertas hoje para uma exceção prevista em lei: portugueses fora de seu domicílio eleitoral votam neste domingo 3, se tiverem se cadastrado com antecedência nos órgãos competentes.

O pleito já é considerado histórico e um divisor de águas: depois de anos governado por uma coalizão de esquerda, Portugal pode fazer uma guinada à extrema direita do partido “Chega”, justamente em 2024, quando se celebra os 50 anos da “Revolução dos Cravos”, marco da luta contra a ditadura salazarista.

Quem viveu o começo dos anos 1990 no Brasil jamais se esquecerá da figura imponente de um jovem político brasileiro boa pinta que se dizia disposto a combater os privilégios da classe e que, da noite para o dia, estampava as capas das maiores revistas e jornais do país.

Era o ex-presidente Fernando Collor de Mello, vulgo “caçador de marajás”, e sua eleição e posterior impeachment sacudiram profundamente os alicerces da sociedade brasileira. Muitas “caras pintadas” depois, surge em Portugal um candidato que poderia evocar, pelo menos para essa geração de brasileiros mais velhos, a figura carismática do jovem Collor, especialmente em seus anos “dourados”.

Trata-se de André Ventura, candidato neste pleito decisivo pelo principal partido da extrema direita portuguesa, o “Chega”. Descrito como ambicioso e camaleão, esse advogado de 41 anos, que gosta de aparecer em cartazes de campanha e vídeos virais com uma barba de três dias, afirma publicamente ter pensado em se tornar padre ou escritor, mas foi como comentarista esportivo de TV que ele se destacou em Portugal, e sua fama abriu as portas para a política.

Em seu rastro meteórico, até brasileiros parecem ter sido seduzidos, apesar do claro discurso antimigrante do partido de extrema direita: um dos principais quadros políticos e militantes do partido “Chega” em Porto é o brasileiro Marcus Santos, que se identifica na rede social X como “ex-atleta profissional” e atualmente “Conselheiro Nacional do partido Chega”.

No Brasil, um dos principais cabos eleitorais do “Chega” é o ex-presidente Jair Bolsonaro, que já convocou publicamente os brasileiros com dupla nacionalidade a votarem em Ventura.

https://twitter.com/Jeffers78017291/status/1763910200556224839

Abstenção e corrupção: os grandes temas

O pleito de 10 de março também enfrentará o fantasma da abstenção: nas legislativas de 2019 e 2022, cinco em cada dez portugueses não foram às urnas. E há uma tendência geral para o aumento da abstenção. Fatores como a desigualdade, os baixos salários e o menor grau de educação podem ajudar a explicar este crescimento.

O país, que iniciou oficialmente no domingo 25 a campanha para as eleições legislativas , pode dar uma guinada à direita após oito anos de governo socialista, abalados por denúncias de tráfico de influência.

“O tema corrupção na atual conjuntura europeia favorece a direita radical”, afirma o cientista político Antonio Costa Pinto, do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS).

Vários países da União Europeia, incluindo Itália, Eslováquia, Hungria e Finlândia, são governados por coalizões integradas por partidos de extrema-direita. Os Países Baixos podem ser o próximo da lista, após a vitória de Geert Wilders nas eleições legislativas de novembro.

Em Portugal, que celebrará em abril os 50 anos da Revolução dos Cravos e o fim de uma ditadura fascista, a extrema direita demorou mais que em outros países para abalar o cenário político, mas a teoria de uma exceção lusitana foi descartada.

Xenofobia, juventude e discurso antissistema: uma combinação explosiva

Originário dos subúrbios de Lisboa, ele se tornou uma figura nacional quando atacou a comunidade cigana com comentários xenófobos como candidato a outro cargo de prefeito na região, colocando-se à margem de seu partido.

Em seguida, Ventura deixou o PSD para fundar o partido de extrema direita “Chega” em 2019, dando voz a um discurso populista e antissistema que até então não havia encontrado saída eleitoral em Portugal.

Capaz de usar seu charme ou suas piadas truculentas, ele entrou no parlamento português no mesmo ano como o único deputado, impulsionando sua formação para o posto de terceira força política do país nas eleições legislativas de 2022.

E é esse candidato que seduz cada vez mais principalmente a juventude portuguesa. “A juventude não deve ser monopólio da esquerda”, diz a parlamentar portuguesa Rita Matias. Com seu sorriso carismático, a jovem de 25 anos tornou-se uma das figuras de proa do partido de extrema direita “Chega”, que conta com o eleitorado jovem para confirmar seu crescimento meteórico.

“Os jovens estão no centro da nossa ação política”, disse a jovem de longos cabelos castanhos aos apoiadores reunidos em uma biblioteca pública em Lisboa, como parte da campanha para as eleições gerais do próximo domingo.

Como a mais jovem deputada eleita nas eleições parlamentares de janeiro de 2022 e atual cabeça de lista do distrito de Setúbal, que inclui os subúrbios ao sul de Lisboa, a porta-voz da juventude do partido encarna facilmente essa estratégia. Aparecendo regularmente ao lado do presidente do “Chega”, André Ventura, Matias também atrai o entusiasmo dos eleitores que, nas ruas do Barreiro, uma das cidades do seu círculo eleitoral, correm para abraçá-la ou tirar selfies com ela, como reza a boa bíblia das redes sociais de qualquer candidato jovem que se preze em 2024.

Fundado em 2019, ano em que o partido entrou no Parlamento, o Chega começou atraindo eleitores conservadores com mais de 40 anos. Mas, de acordo com as últimas pesquisas, é o partido que está fazendo o maior progresso entre os jovens.

Uma pesquisa publicada no início de janeiro deu a ele 16% das intenções de voto, um número que subiu para quase 26% entre os jovens de 18 a 34 anos. Nessa faixa etária, o partido populista ficou à frente de todos os seus rivais, com o Partido Socialista obtendo 22%.

Depois de oito anos de governo socialista, os portugueses votarão no próximo domingo em eleições gerais antecipadas, cujo resultado é considerado incerto e que podem registrar um novo aumento da extrema direita, três meses antes das eleições europeias.

Estratégia Tik Tok: “antifeminista” e “católica”

No momento em que Portugal se prepara para comemorar, no próximo mês, o cinquentenário da Revolução dos Cravos, que pôs fim a décadas de governo autoritário e conservador, o partido de extrema direita “Chega” aposta em um eleitorado “que não viveu a ditadura” e “não tem fortes vínculos com os partidos tradicionais”, explica Lea Heyne, do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, autora de um estudo sobre o partido.

Iniciada na política por seu pai, líder de um movimento contra o aborto e a eutanásia que se uniu ao Chega, a jovem parlamentar Rita Matias se descreve como católica e “antifeminista”. Dentro do partido, começou por se encarregar das redes sociais, lançando uma conta no TikTok em 2021, que se tornou agora um dos principais vetores de comunicação com os jovens.

Usando vídeos bem-humorados e frases de choque que rapidamente se tornam virais, o “Chega” ultrapassou a marca de 200.000 followers, enquanto seus rivais, que chegaram muito mais recentemente a essa rede social, mal alcançaram a marca de mil assinantes.

A aposta de ter uma forte presença nas redes sociais, feita pelo próprio André Ventura, permitiu ao seu partido político contrariar a imagem de “homem extremista e racista” que “os meios de comunicação social estavam passando”, confidencia Rita Matias.

“Quando, de repente, esse mesmo homem aparece brincando com os óculos de sol, chutando uma bola ou andando de skate, (…) isso o aproxima do cidadão comum”, salienta. “A técnica não é muito diferente do que utiliza, por exemplo, a extrema direita de Georgia Meloni na Itália.”

Maioria de esquerda “improvável”

Seja quem for o vencedor das eleições, “uma maioria de esquerda parece improvável”, observa José Santana Pereira, professor de Ciência Política do Instituto Universitário de Lisboa ISCTE.

Nas eleições anteriores, há dois anos, os socialistas conquistaram sozinhos a maioria absoluta dos assentos na assembleia. Desta vez, no entanto, é provável que o parlamento português se incline para a direita devido à ascensão do jovem partido de extrema-direita Chega, que em janeiro de 2022 se tornou a terceira maior força política do país, com 7,2% dos votos, e agora é creditado com 17% das intenções de voto.

“Esse aumento segue uma tendência observada em outros países europeus”, observa Santana Pereira. “Até 2019 (quando o Chega foi criado), Portugal era descrito como uma espécie de porto seguro, livre do populismo, mas era claramente apenas uma questão de tempo até que ele se instalasse”, acrescenta.

“O cenário estava pronto”, aponta o cientista político, explicando que as “atitudes populistas” em relação às elites políticas já estavam presentes na opinião pública.

*Com AFP e agências

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