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Por que o Ocidente é incapaz de reagir à ferocidade do general Min Aung Hlaing?

Promover a democracia no mundo todo é uma ambição admirável, a menos, é claro, que você seja um ditador sanguinário e violador em série dos direitos humanos como o principal general de Mianmar, Min Aung Hlaing. Esse líder de golpe e chefe da junta militar […]

Por que o Ocidente é incapaz de reagir à ferocidade do general Min Aung Hlaing?
Por que o Ocidente é incapaz de reagir à ferocidade do general Min Aung Hlaing?
Enquanto os militares sob o comando de Hlaing oprimem os dissidentes, o mundo ocidental faz muxoxos
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Promover a democracia no mundo todo é uma ambição admirável, a menos, é claro, que você seja um ditador sanguinário e violador em série dos direitos humanos como o principal general de Mianmar, Min Aung Hlaing. Esse líder de golpe e chefe da junta militar prefere a força bruta às urnas eleitorais.

Enquanto o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, recebe mais de cem países em uma “cúpula virtual pela democracia”, Min Aung Hlaing e suas tropas do Tatmadaw estarão ocupados a matar civis por exigir direitos democráticos e a lançar ataques impiedosos a aldeões que chamam de “terroristas”.

O contraste entre o que o Departamento de Estado dos EUA diz que a ­cúpula pretende fazer, combater o autoritarismo e a corrupção e promover os direitos humanos, e a incapacidade da comunidade internacional de fazer qualquer dessas coisas em Mianmar não poderia ser mais forte. Hong Kong, Sudão, Irã, Nicarágua, há diversos exemplos de países onde a democracia foi subvertida ou extinta. Mas Mianmar destaca-se.

Depois de décadas de repressão, uma transição democrática começou em 2011. O progresso foi lento e imperfeito, mas houve eleições e reformas. Prisioneiros políticos foram libertados e a liberdade de expressão floresceu.

Em seguida, apareceu Min Aung Hlaing, um retrocesso violento num uniforme bem passado, determinado a proteger a base de poder dos militares e os interesses comerciais dos corruptos.

O golpe de fevereiro e a detenção de líderes eleitos levaram a enormes protestos de rua e ao aumento da violência do exército. Mais de 1,1 mil cidadãos foram mortos e dezenas de milhares, presos ou forçados a fugir. A resistência armada cresce e cria uma guerra civil multifacetada, semelhante à da Síria.

Mianmar é caso clássico de um aspirante à democracia esmagado por um tirano. Simboliza a luta global pelo pluralismo político, os valores progressistas e direitos supostamente universais que a cúpula da democracia espera promover. É também um teste decisivo. O bem-intencionado “festival do waffle” de Biden, como os críticos o chamam, fará alguma diferença real? Se os campeões da democracia não podem resolver um caso evidente como Mianmar, eles podem abandonar sua sessão de Zoom e mudar para o PlayStation.

A situação de Mianmar expôs fraquezas crônicas em um sistema internacional baseado na Organização das Nações Unidas que, teoricamente, deveria oferecer soluções. Em junho, 119 países apoiaram uma resolução na Assembleia-Geral da ONU condenando de forma veemente a violência da junta contra os civis, exigindo a libertação de prisioneiros políticos, incluindo a líder da Liga Nacional para a Democracia, Aung San Suu Kyi, e pedindo um embargo internacional de armas. Mais recentemente, a ONU recusou o reconhecimento oficial ao regime de Min Aung Hlaing, negando efetivamente a sua legitimidade. E mais de 500 grupos de direitos civis instaram o Conselho de Segurança a agir para conter a escalada da violência no estado de Chin, um centro de resistência.

À revelia das restrições punitivas à mídia, grupos locais criativos continuam a relatar o avanço das atrocidades. Recentemente, descobriu-se que milhares de civis fugiram de ataques mortais conduzidos por helicópteros na região de ­Sagaing, onde aldeias foram incendiadas.

O país é caso clássico de um aspirante à democracia esmagado por um tirano

Apesar de tudo o que se sabe sobre a natureza criminosa da ditadura de Min Aung Hlaing, apesar de vários relatos de assassinatos, estupros, tortura e deslocamento em massa, a agonia de Mianmar continua sem controle. Os Estados Unidos e a União Europeia impuseram sanções limitadas. Jake Sullivan, conselheiro de segurança nacional de Biden, prometeu apoio à resistência. A habitualmente tímida Associação das Nações do Sudeste Asiático deu o passo incomum de excluir Min Aung Hlaing de sua última reunião de líderes. E uma declaração conjunta feita pelos Estados Unidos, o Reino Unido e outros países expressou “grave preocupação com relatos de contínuas violações dos direitos humanos… incluindo violência sexual e tortura”. Mas toda essa indignação justificada significará pouco ou nada, a menos que Min Aung Hlaing e seus capangas sejam contidos em seu trajeto. Infelizmente, há poucos sinais disso.

Como observa a analista Annabelle Heugas, da Fundação Konrad Adenauer, a explicação está próxima. A China, autoproclamada “grande irmã” de Mianmar, tem interesse estratégico em manter o controle sobre um país onde investiu pesadamente e que está dentro de sua “esfera de influência” imaginária. Embora não aprove necessariamente o comportamento de Min Aung Hlaing, a oferta de cobertura diplomática e equipamentos militares de Pequim decorre de cálculos políticos e comerciais pragmáticos, escreveu Heugas.

Outro grande vizinho de Mianmar, a Índia, teme que colocar a junta no ostracismo seja um presente para seu rival chinês, então se cala. A Rússia só quer vender armas aos generais – e ainda quer, porque a proposta de embargo de armas da ONU não é compulsória.

A cúpula de Biden, e um acompanhamento presencial no próximo ano, examinará maneiras de promover a democracia em lugares como Mianmar. Uma sugestão um tanto frágil é uma aliança internacional para conter a desinformação online. Evidentemente, não há varinha mágica. Nenhuma conversa ou “pivôs” da Ásia-Pacífico podem alterar as realidades geopolíticas. Na era pós-Iraque, pós-Afeganistão e pós-intervenção, as democracias ocidentais rejeitam instintivamente opções arriscadas de poder duro – como armar a oposição de ­Mianmar –, especialmente quando envolvem a China ou a Rússia.

Se o Ocidente não pode garantir a democracia soberana na Ucrânia, lutando para respirar à sua porta, que esperança tem Mianmar? Min Aung Hlaing certamente entende a situação. Na segunda-feira 6, um tribunal comandado por militares condenou Aung San Suu Kyi, líder eleita de Mianmar, à prisão por acusações forjadas. Esse desafio irônico, essa injustiça grosseira e essa afronta à democracia são desanimadores e repulsivos. Como inúmeros outros crimes cometidos diariamente em Mianmar, quase com certeza ficarão impunes. •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1187 DE CARTACAPITAL, EM 9 DE DEZEMBRO DE 2021.

CRÉDITOS DA PÁGINA: YE AUNG THU/POOL/AFP

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