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Por que o chefe de uma economia em crise virou a esperança peronista na Argentina

Conheça Sergio Massa, o escolhido para enfrentar a direita macrista, divida entre dois candidatos, e as bravatas do ‘Bolsonaro argentino’

O pré-candidato a presidente da Argentina Sergio Massa. Foto: AFP/Ministério da Economia
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Em um país cuja inflação passa dos 100% e que tem quase 40% da população na pobreza, um presidente dramaticamente impopular e uma vice distante definem como candidato à sucessão o ministro da Economia.

A situação de Sergio Massa, ungido por Alberto Fernández e (em menor medida) por Cristina Kirchner para disputar a Presidência da Argentina, não é nada confortável. O fato de o ministro transitar pela esquerda e pela direita, contudo, é visto como um combustível para sua candidatura.

Neste domingo 13, os argentinos votarão em uma sessão primária obrigatória. O resultado definirá os candidatos que de fato concorrerão à Presidência, em 23 de outubro. Um eventual segundo turno ocorreria em 19 de novembro.

A direita macrista chega às primárias com duas candidaturas:

  • Patricia Bullrich, ex-ministra da Segurança;
  • Horacio Larreta, chefe de governo da cidade de Buenos Aires.

Patricia Bullrich e Horacio Larreta, pré-candidatos à Presidência da Argentina. Foto: AFP

Pela primeira vez desde a redemocratização, em 1983, um candidato de extrema-direita também desponta com relativa força: Javier Milei, “o Bolsonaro argentino”.

À esquerda, Massa disputará as primárias com Juan Grabois, o candidato ideal aos olhos da esquerda peronista. Não há margem razoável de dúvida, porém, sobre a vitória de Sergio Massa nas PASO.

Quando Alberto Fernández anunciou, em abril, que não concorreria à reeleição, naturalmente as atenções se voltaram para Cristina, vista por muitos como a mais capaz de barrar a volta da direita ao poder.

Ela, porém, decidiu não se apresentar para a disputa. Embora a palavra de ordem “Cristina presidenta” estivesse na boca de militantes, o caminho para concretizá-la nunca foi simples. Em dezembro de 2022, CFK confirmou que não seria candidata, logo depois de ser condenada por corrupção em um caso que ela classifica como mero pretexto para retirá-la, de uma vez por todas, do xadrez eleitoral.

Há dúvidas sobre o grau de esforço pessoal a ser empreendido por Cristina na campanha. Massa não é o candidato dos sonhos da vice-presidenta

Mas por que o chefe de uma economia em crise poderia surgir como a grande esperança de evitar o retorno da direita à Casa Rosada, após o fracasso do governo Macri, entre 2016 e 2019?

CartaCapital conversou com especialistas na política argentina a fim de destrinchar o complexo tabuleiro eleitoral, com potencial de impactar a economia brasileira. A Argentina, afinal, é o terceiro maior parceiro comercial do Brasil, atrás apenas de China e Estados Unidos.

Uma ampla corrente de cientistas políticos vê Massa como uma figura extremamente pragmática, ambiciosa e oportunista. Seu passado, a propósito, está longe de ser o de um peronista raiz.

O peronismo é o principal movimento popular da história da Argentina e se formou em torno do ex-presidente Juan Domingo Perón e da ex-primeira-dama Eva Perón, duas figuras cuja influência sobrevive ao passar das décadas com admirável resiliência.

Sergio Massa já foi prefeito de Tigre, na grande Buenos Aires, deputado nacional e presidente da Câmara, antes de se tornar o superministro da Economia. Sua relação com Cristina, a mais importante representante peronista em muitas décadas, foi marcada por altos e baixos, a depender da direção dos ventos.

“Massa tem sido representado como um candidato de diálogo com diferentes setores políticos da Argentina. Seu pragmatismo lhe permitiu ganhar o apoio de um amplo setor do peronismo, do sindicalismo e das elites empresariais”, resume Nahuel Toscano, cientista político da Universidade de Buenos Aires.

Não é possível analisar a eleição sem mencionar uma decisão de Mauricio Macri que deixou a Argentina de joelhos diante do Fundo Monetário Internacional. Em 2018, o então presidente contraiu um empréstimo de 57 bilhões de dólares com o órgão, uma fatura oferecida como “legado” a Alberto e Cristina.

Não é só isso. A Argentina fechou 2014, ano anterior à eleição de Macri, com uma inflação de 23,9%. Hoje, Massa quebra a cabeça para equacionar uma dívida e uma inflação que se converteram em uma bola de neve.

Confira os índices de cada um dos anos do governo de Mauricio Macri:

  • 2016: 26,5%
  • 2017: 25,7%
  • 2018: 34,3%
  • 2019: 53,5%.

“Massa tem sido associado aos interesses do círculo vermelho (expressão que designa as elites empresariais da Argentina) e de setores da classe média. Sua posição em relação aos compromissos da dívida assumida no governo Macri tem sido a de cumprir com o FMI para alcançar a estabilidade econômica e voltar a acessar o mercado financeiro global”, explica Toscano.

Para Mercedes Koch, mestre em Estudos Internacionais pela Universidade Torcuato di Tella, de Buenos Aires, a força de Massa reside em sua disposição para agir em momentos de crise.

‘Ele soube aproveitar o vazio de poder na coligação de Alberto e de Cristina, estabelecendo-se como o ‘piloto da tempestade’, como dizem aqui

Há, no entanto, a outra face da moeda. “Acho muito complexo seu duplo papel de candidato à Presidência e de ministro, pois se não conseguir demonstrar resultados à sociedade argentina, sua credibilidade estará em jogo”, pondera Koch.

Outra dúvida recorrente envolve o grau de esforço pessoal a ser empreendido por Cristina na campanha. Massa não é o candidato dos sonhos da vice-presidenta, que, após decidir não concorrer, demonstrou predileção por Eduardo “Wado” de Pedro, ministro do Interior.

Ariel Goldstein, doutor em Ciências Sociais pela Universidade de Buenos Aires e pesquisador no Instituto de Estudos Latino-Americanos e do Caribe, entende ser difícil imaginar o papel de Cristina na disputa, inclusive porque o peronismo vive um período de “redefinição”, diante dos obstáculos dos últimos anos.

“Ela quer preservar sua parte do poder. Ao mesmo tempo, tem uma desconfiança grande em relação a Massa”, explica o especialista. “Com Massa ela tem uma tensão desde que ele saiu do peronismo para competir contra ela. Agora são aliados, mas é uma relação muito pragmática, pelo poder.”

De fato, a história entre Massa e Cristina se construiu à base de trovoadas. Há episódios tão reveladores quanto insólitos, a exemplo dos documentos vazados em 2010 nos quais ele ofendia o ex-presidente Nestor Kirchner. Massa também encabeçou a criação da Frente Renovadora, formada para se contrapor ao kirchnerismo dentro do campo peronista.

Em 2015, decidiu se lançar candidato à Presidência, em vez de apoiar Daniel Scioli, o postulante chancelado por Cristina. Mauricio Macri venceu aquela eleição, com Scioli em segundo e Massa em terceiro.

Quatro anos depois, Massa ainda nutria o sonho de chegar à chefia do Executivo, mas acabou por se juntar à coalizão que apoiou Alberto Fernández, a Frente de Todos, hoje chamada de União pela Pátria.

Sergio Massa foi o grande nome da chapa na corrida à Câmara, para a qual foi eleito e da qual se tornou presidente em dezembro de 2019. Ele permaneceu no cargo até agosto do ano passado, quando assumiu o Ministério da Economia.

E agora? Com uma economia capenga, Massa pode ser um candidato competitivo? Mercedes Koch entende que as chances da centro-esquerda aumentarão caso Patricia Bullrich derrote Horacio Larreta nas primárias da direita.

Bullrich representa a “ala dura”, enquanto Larreta buscaria disputar com Massa o mesmo eleitor indeciso e o chamado centro político.

“O radicalismo do discurso de Bullrich beneficiará o candidato do governo, como um garantidor da continuidade do establishment”, avalia a cientista política.

Outro fator que tende a beneficiar Massa é a guerra escancarada entre Bullrich e Larreta nas primárias, um nível de hostilidade que o candidato governista não tem de enfrentar na disputa com Grabois.

Na extrema-direita, Javier Milei é um grande ponto de interrogação, com seu partido A Liberdade Avança. O passado recente da América Latina nos ensina não ser prudente menosprezar um candidato desse campo político, embora ele não apareça, segundo as projeções, em condições de vencer a eleição. Ao menos neste momento.

Nos últimos meses, eleições em diferentes províncias da Argentina mostraram os limites da extrema-direita, como nas disputas em Córdoba, Jujuy e Santa Fe, nas quais os candidatos de Milei foram derrotados.

“Os fracos resultados nas eleições provinciais deram conta de que os votos de Milei não são transferíveis para os seus candidatos”, aponta Nahuel Toscano. “Isso tem levantado dúvidas sobre se Milei conseguirá fazer uma boa eleição nacional ou se, ao contrário, sua candidatura começa a murchar.”

Javier Milei, o candidato da extrema-direita à Presidência da Argentina. Foto: AFP/Telam-Maximiliano Luna

Enquanto Milei, em linha com a cartilha da extrema-direita, tenta vender supostas soluções fáceis para problemas graves, Massa tem de lidar com desafios intrínsecos à pasta que comanda e outros de ordem histórica.

“Ele está se oferecendo como alguém que pode resolver as coisas, mas a economia está muito ruim, há muita inflação. É uma situação muito difícil para o peronismo, uma das situações mais difíceis para o peronismo desde a volta da democracia na Argentina”, define Ariel Goldstein.

Isso ajuda a explicar, na avaliação do pesquisador, a ascensão de Milei. O governo de Macri fez disparar a inflação, mas o de Fernández, por diversos motivos, não conseguiu debelar o avanço dos preços. Mais: atualmente, a pobreza alcança quase quatro em cada dez argentinos. É um prato cheio para a ultradireita.

“Pela primeira vez haverá uma extrema-direita com uma votação expressiva na Argentina, de cerca de 20%”, diz Goldstein. “Os dois candidatos, provavelmente Massa e Bullrich, precisarão [no segundo turno] do voto dos eleitores de Milei, que já marcou a eleição.”

Milei é forte especialmente entre setores de uma machucada juventude, alvo marcante da precarização no trabalho, da pobreza e da violência. Felizmente para a democracia argentina, o “fenômeno Milei” também enfrenta problemas internos em seu grupo político, em um momento decisivo para a disputa eleitoral.

E Massa? Oportunista. Pragmático. Moderado. Ambicioso. Mais à direita que à esquerda do peronismo. Capaz de atrair sindicalistas e de conversar com os Estados Unidos, os empresários e o FMI, além de ter um canal de diálogo com parte da mídia, o que não é desprezível. Essas são algumas das definições sobre os atributos do ministro.

Apesar de ele não ser um exemplo de peronista aos olhos da esquerda, uma eventual vitória eleitoral em 2023 representaria um dos grandes triunfos da história do movimento. Afinal, trata-se do chefe da Economia de um governo tão impopular que o presidente decidiu sequer tentar a reeleição.

Com inflação nas alturas, falta de dólares e uma persistente pobreza, coube a Massa assumir a responsabilidade de impedir a chegada da direita à Casa Rosada, seja por meio da ferocidade de Bullrich, do neoliberalismo à la Macri de Larreta ou das bravatas de Milei. Começou a eleição.

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