Mundo

cadastre-se e leia

Pontos cegos

A variante Ômicron é, por ora, um risco maior para países pobres e com baixo índice de vacinação

Ambiente propício. Na África desamparada pelas potências, mas cheia de turistas, o Coronavírus sofre nova mutação
Apoie Siga-nos no

No início de agosto, Gideon Schreiber e uma equipe de virologistas do Instituto de Ciência Weizmann, em ­Israel, começaram a brincar com a proteína da espícula do vírus Sars-CoV-2, a proteína que permite que o vírus entre em nossas células, para ver se poderiam prever futuras mutações capazes de gerar novas variantes perigosas. Na época, Schreiber observou com preocupação que havia diversas maneiras pelas quais a proteína da espícula poderia evoluir. Se todas essas mutações ocorressem de uma vez, poderiam produzir uma variante extremamente transmissível e potencialmente capaz de escapar de algumas das defesas imunológicas do corpo – e embotar a eficácia das vacinas.

Schreiber publicou as descobertas em um artigo e não pensou muito mais a respeito. Três meses depois, seus medos se concretizaram. Uma variante conhecida como B.1.1.529, que a Organização Mundial da Saúde chamou de Ômicron na sexta-feira 26, surgiu na África do Sul, portadora de todas as mutações que Schreiber e sua equipe previram. “Novas variantes são a norma”, disse o cientista. “Este caso é único, pois ela tem muito mais mutações do que normalmente se espera. Essas mutações podem aumentar a evasão imunológica, tornando-a ainda mais problemática. Não se sabe se a variante causará doenças mais graves.”

Em todo o mundo, equipes de virologistas correm para trabalhar na sequência genética da Ômicron e tentar descobrir o que pode acontecer a seguir. Até agora, o trabalho conduzido por Túlio de Oliveira, bioinformático que dirige instituições de sequenciamento genético em duas universidades sul-africanas, revelou que a variante contém mais de 30 mutações em sua proteína da espícula, em comparação com a cepa original da Sars-CoV-2.

A mutação é altamente transmissível, mas talvez não tão letal

O mais preocupante são as mutações que permitem que ela evite anticorpos, seja de infecção anterior por Covid-19, seja por vacinação. “Eu esperava que a Ômicron causasse mais danos na neutralização de anticorpos provocados por vacinas e infecções do que qualquer coisa que vimos até agora”, tuitou o professor Jesse Bloom, virologista do Centro de Pesquisa do Câncer Fred Hutchinson, em Seattle.

Segundo Oliveira, a Ômicron responde por 75% dos genomas do Sars-CoV-2 em teste na África do Sul, mas também foi detectada em Botsuana, Hong Kong e Israel. “Parece ser altamente transmissível”, disse o cientista genômico Yatish Turakhia, professor-assistente de engenharia elétrica e de computação na Universidade da Califórnia, em San ­Diego. “Em menos de duas semanas, parece ter-se tornado a variante dominante na África do Sul, ultrapassando a Delta.”

Portas fechadas. Vários aeroportos do mundo bloquearam a chegada de voos do continente africano

Como exatamente surgiu a Ômicron permanece um mistério. Os cientistas suspeitam que, como a variante ­Beta, que também surgiu na África do Sul em 2020, a explicação mais plausível é de que o vírus conseguiu crescer e evoluir de forma constante no corpo de alguém imunocomprometido, provavelmente um paciente com HIV/Aids não tratado. Com 8,2 milhões de infectados pelo HIV, mais do que qualquer outro lugar do mundo, a luta da África do Sul contra a Covid-19 tem sido particularmente complicada, pois esses pacientes se esforçam para eliminar o vírus, o que significa que ele pode permanecer em seus corpos por mais tempo.

Mas, enquanto muitos virologistas esperavam que a próxima grande variante da Covid-19 fosse uma extensão da Delta, a Ômicron não tem nenhuma relação. Em vez disso, ela combina mutações mais problemáticas vistas nas variantes Alfa, Beta e Gama, juntamente com algumas outras recém-adquiridas. Para Ravi Gupta, professor de microbiologia clínica na Universidade de Cambridge, que disse no início deste mês que tinha 80% de certeza de que uma nova supervariante surgiria, as evidências até agora são preocupantes.

“Não é uma mudança da Delta como se esperava, mas uma coisa nova baseada em mutações que vimos antes, tudo misturado em um vírus”, disse. “Isso me preocupa. Ele teve muito tempo para se adaptar, e claramente fez um bom trabalho se aceitarmos a rápida expansão na África do Sul. Sem uma ação internacional orquestrada agora, teremos muito mais vidas perdidas globalmente, devido a esta variante.”

Os cientistas dizem que a proibição de viagens tende a desacelerar a disseminação da Ômicron, mas detê-la em seu percurso é quase impossível. Em vez disso, Gupta pede testes da nova cepa para todos os viajantes, bem como exames da falha do alvo do gene S mundial, uma forma de vigilância que pode identificar se uma nova variante aumenta rapidamente a prevalência em uma determinada região.

A desigualdade no nível de vacinação entre os países estimula o surgimento de variantes

Nesse ínterim, os fabricantes de vacinas e cientistas tentam descobrir o quanto a Ômicron pode ser capaz de neutralizar a proteção oferecida pelas vacinas existentes para Covid-19.

Os quatro casos identificados até agora em Israel, todos indivíduos que haviam acabado de retornar de países africanos, ainda estavam infectados, apesar de terem sido vacinados duas vezes. Como William Hanage, epidemiologista da Escola de Saúde Pública T.H. Chan, de Harvard, a questão mais importante é, no entanto, se a variante causa doença grave nos infectados. “A Delta também é encontrada em vacinados”, disse. “Então, isso não é especial. Grande parte do ruído sobre a evasão imunológica baseia-se no que pensamos saber sobre as mutações na proteína da espícula. Seria importante saber que tipo de doença resulta das infecções repentinas e reinfecções. Para as partes do mundo onde altos níveis de vacinação são uma quimera, isso pode ser muito sério.”

A BioNTech, que lançou a primeira vacina autorizada para Covid-19 com a ­Pfizer há pouco mais de um ano, espera ter dados laboratoriais sobre o desempenho de sua vacina contra a Ômicron em duas semanas. A empresa revelou que tomou medidas no início deste ano que significam que, se necessário, pode adaptar sua vacina contra uma nova variante em seis semanas e começar a enviar a nova versão para países em cem dias.

Dados de JHU CSSE Covid-19 Data e Our World in Data em 29/11/2021.

Para países de alta renda, o impacto­ da Ômicron poderá ser menos severo. ­Schreiber diz que, embora a variante possa ser capaz de evitar alguns anticorpos, todas as vacinas disponíveis ainda têm muitas maneiras diferentes de combater o vírus.

Em vez disso, o impacto total da variante provavelmente será sentido em países como a África do Sul, onde apenas 24% da população recebeu duas doses. São os dados dessas nações nas próximas semanas e meses que revelarão a real potência da Ômicron. “Ela parece ser muito boa em evasão imunológica”, disse Schreiber. “Isso talvez não seja tão surpreendente com o alto número de mutações na proteína da espícula. A questão mais importante é se ela causará doenças graves em vacinados. Simplesmente, não sabemos. Além disso, embora a variante se espalhe rapidamente, também pode desaparecer novamente, como aconteceu com muitas outras variantes. Não é possível saber no momento. O que está claro é que devemos estar alertas e ser cuidadosos.” •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

DE BRAÇOS CRUZADOS

Enquanto o mundo se fecha, o Brasil ignora o perigo

Reforço? Queiroga não vê necessidade

Os cientistas parecem unânimes no diagnóstico: a variante Ômicron fará o maior estrago na África, onde apenas 6,6% da população está completamente imunizada, segundo o chefe dos Centros Africanos para Controle e Prevenção de Doenças, John Nkengasong. Embora o Brasil tenha um porcentual de vacinação dez vezes maior – até a terça-feira 30, quase 77% dos brasileiros haviam recebido ao menos uma dose e 63% estavam com o ciclo vacinal completo – isso não significa que a mutação do Coronavírus não represente uma grave ameaça. Na prática, quase 48 milhões de brasileiros permanecem desprotegidos. Para piorar, o País segue sem uma coordenação nacional no enfrentamento à pandemia.

Por ora, o governo federal limitou-se a vetar a entrada de voos de seis nações africanas, África do Sul, Botsuana, Essuatini (ex-Suazilândia), Lesoto, Namíbia e Zimbábue. Há, porém, casos confirmados em ao menos 17 países, entre eles Alemanha, Espanha, Itália, Portugal e Reino Unido. Uma rápida consulta ao Sistema de Registro de Operações da Agência Nacional de Aviação Civil, a Anac, revela a existência de mais de uma centena de decolagens e aterrisagens de voos entre o Brasil e essas nações nas próximas semanas. Ainda assim, o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, minimiza o perigo e trata a Ômicron como uma “variante de preocupação, mas não de desespero”. O cardiologista descartou, ainda, a possibilidade de antecipar a aplicação da dose de reforço para os imunizados, como anunciou o Reino Unido. “Se houver uma eventual terceira onda, teremos uma condição muito melhor de assistir a nossa população.”

Escaldados com o negacionismo de Jair Bolsonaro e seus auxiliares, os prefeitos de ao menos 11 capitais – Belo Horizonte, Campo Grande, Curitiba, Fortaleza, João Pessoa, Macapá, Palmas, Recife, Salvador, São Luís e Teresina – decidiram cancelar a festa de Réveillon. Várias outras capitais cogitam fazer o mesmo, a exemplo de São Paulo, que pretendia flexibilizar o uso de máscaras a partir de 11 de ­dezembro, mas deve retardar a decisão por cautela. Na verdade, até mesmo os festejos do Carnaval, em fevereiro do próximo ano, estão sob avaliação nas cidades mais populosas.

“O que ocorre atualmente em determinados países europeus deve servir de alerta para o Brasil neste momento, pois eles vêm vivenciando uma nova onda de transmissão da doença em meio à chegada do inverno, que tem impactado principalmente locais com baixa cobertura vacinal”, alerta o Observatório Covid-19, da Fiocruz, a recomendar especial cautela nas festas de fim de ano. “A Inglaterra, mesmo tendo alta cobertura de imunizações, vem adotando medidas de proteção complementares, incluindo doses de reforço entre os vacinados.”

– Por Rodrigo Martins.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1186 DE CARTACAPITAL, EM 2 DE DEZEMBRO DE 2021.

CRÉDITOS DA PÁGINA: HERVE CYRIAQUE SEREFIO/MINUSCA/ONU E ISTOCKPHOTO – WALTERSON ROSA/MS E CYRIL MARCILHACY/FMI

Leia essa matéria gratuitamente

Tenha acesso a conteúdos exclusivos, faça parte da newsletter gratuita de CartaCapital, salve suas matérias e artigos favoritos para ler quando quiser e leia esta matéria na integra. Cadastre-se!

ENTENDA MAIS SOBRE: , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Um minuto, por favor…

O bolsonarismo perdeu a batalha das urnas, mas não está morto.

Diante de um país tão dividido e arrasado, é preciso centrar esforços em uma reconstrução.

Seu apoio, leitor, será ainda mais fundamental.

Se você valoriza o bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando por um novo Brasil.

Assine a edição semanal da revista;

Ou contribua, com o quanto puder.

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo