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Ponte da paz ou da guerra?

Os controversos laços das ilhas taiwanesas de Kinmen com a China

Ponte da paz ou da guerra?
Ponte da paz ou da guerra?
As estacas lembram a tensão permanente – Imagem: Sam Yeh/AFP
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Nas sonolentas ilhas ­Kinmen de Taiwan, que foram descritas como a linha de frente de qualquer conflito potencial entre Pequim e Taipé, o clima está longe de ser de guerra. De suas costas arenosas, os arranha-céus reluzentes de Xiamen, cidade costeira chinesa a apenas 5 quilômetros de distância, lembram a riqueza e a segurança que Pequim promete dar a Kinmen, caso Taiwan e a China sejam unificados.

Mas, se os políticos em Taipé debatem a probabilidade de um conflito armado com Pequim, que quer unificar a China e Taiwan e não descarta o uso da força para isso, os cidadãos taiwaneses de Kinmen veem um passado e um futuro inextricavelmente ligados à superpotência vizinha. Enquanto os políticos consideram as opções para fortalecer as defesas de Taiwan, em Kinmen as autoridades locais discutem um plano controverso para a construção de uma ponte para Xiamen, que reduziria as barreiras para a China, em vez de aumentá-las.

O arquipélago de Kinmen é governado por Taipé desde que o partido nacionalista KMT, derrotado pelos comunistas na guerra civil da China, recuou para Taiwan em 1949. Durante as duas crises do Estreito de Taiwan na década de 1950, as ilhas foram fortemente bombardeadas pelo Exército Popular de Libertação. Agora as bombas pararam de cair e os projéteis de artilharia se transformaram em facas de cozinha para turistas. As barricadas contra desembarque que pontilham as praias voltadas para a China estão enferrujando. “Nossa cultura e história estão muito conectadas. Os parentes não se sentem ameaçados pela China”, afirma Zhou Xiaoyun, candidato a vereador local pelo Partido do Povo de Taiwan (TPP).

Fundado em 2019, o TPP, que, como o KMT, defende intercâmbios culturais e econômicos por meio do estreito, atrapalha a corrida presidencial em Taipé e ganha uma posição em Kinmen, que tradicionalmente tem sido um reduto do KMT.


A economia de Kinmen depende fortemente do turismo. Até 2019, quase metade dos turistas vinha da China. Mas naquele ano, em meio a relações tensas, Pequim proibiu turistas individuais de viajarem para Taiwan. No ano seguinte, citando as restrições da Covid-19, Taiwan também proibiu os grupos de turistas chineses.

Ambas as proibições continuam em vigor, embora desde 20 de julho os parentes chineses dos cônjuges de taiwaneses possam visitá-los em Xiamen, se tiverem permissão. Ainda assim, os moradores locais temem que seus meios de subsistência estejam sendo prejudicados em nome de uma politicagem distante. “É simplesmente impossível”, pondera Michael Szonyi, professor de estudos chineses na Universidade Harvard e autor de um livro sobre Kinmen, “o arquipélago conceber um futuro próspero que não envolva a China.”

“Antes de 1949, Kinmen pertencia à província de Fujian, na China”, diz Wu Jiajiang, executivo-chefe da filial local do TPP. “Depois de 1949, nos tornamos uma ilha de guerra e perdemos os benefícios do comércio.” Wu faz parte de uma coalizão multipartidária que defende uma “ponte de paz” que conectaria as ilhas periféricas de Taiwan com a China. A ideia faz parte de uma proposta mais ampla para transformar Kinmen em uma zona desmilitarizada – atualmente há cerca de 3 mil soldados estacionados nas ilhas –, o que, segundo os apoiadores, levaria à redução das tensões e impulsionaria a economia do território.

Os moradores reclamam que os remédios e serviços públicos nas ilhas são caros, em parte porque é difícil importar suprimentos. Mas os críticos, incluindo o governante Partido Democrático Progressista (DPP), dizem que a ponte é um cavalo de Troia que colocaria em risco a segurança nacional. Poderia tornar-se “uma estrada que atrairia lobos para dentro de casa”, afirmou Hsu Chih-chieh, legislador do DPP, no ano passado.

Li Hao-lun, o executivo-chefe do escritório local do DPP, diz que a ponte tem semelhanças indesejáveis com aquela que liga Hong Kong a Shenzhen, na China continental. A ponte representa um sentimento em Kinmen de que laços estreitos com a China são inevitáveis. Cerca de 30% da água das ilhas é bombeada do Lago Longhu de Fujian, por meio de uma tubulação inaugurada em 2018. Em 2014, o governo local de Kinmen assinou contrato com uma empresa de energia chinesa para fornecer gás natural liquefeito, e há discussões sobre conectar a rede de energia com a chinesa. “Na maior parte do mundo, os políticos podem tomar decisões sobre como obter água sem referência à geopolítica global”, diz Szonyi. Em Kinmen, “isto é impossível”.

Para quem mora na região, o futuro está entrelaçado ao de Pequim

A ilustração mais óbvia das ligações de Kinmen com a China pode ser encontrada no terminal de balsas. Doze barcos por dia transportam passageiros para Xiamen, aonde os cidadãos vão para fazer negócios, visitar familiares e comprar propriedades. Antes da Covid, havia mais de 30 travessias diárias, e hoje a demanda supera em muito a oferta, com os viajantes a se acotovelar nos quiosques em busca de vagas de última hora que ficam disponíveis na lista de espera.

Chen Yujun é originária da China, mas se casou com um taiwanês e teve uma filha em Kinmen. Em recente viagem a ­Xiamen, teve de esperar mais de duas horas por uma vaga na balsa, ela reclama – uma ponte seria “muito conveniente”. A relação tensa entre Taipé e Pequim não tem impacto nos cidadãos comuns, diz.

Menos de 70 mil dos mais de 23 milhões de habitantes de Taiwan vivem em ­Kinmen. Alguns analistas temem, porém, que a anexação das ilhas possa ser uma maneira de a China seguir aos poucos para uma tomada mais ampla de Taiwan sem provocar uma forte reação dos Estados Unidos, que não descartam responder militarmente no caso de um ataque de Pequim.

Os habitantes locais parecem otimistas, mas Szonyi observa que, apesar da afiliação cultural de Kinmen com a China, “a democracia é extremamente importante para eles”. Isso fica claro em debates públicos – que seriam impossíveis na China – sobre se é desejável construir laços mais estreitos com Pequim. Mas muitos habitantes ainda se sentem agredidos por forças de Pequim e Taipé que estão fora de seu controle. “Se a China quiser invadir, não precisa de uma ponte”, diz Wu. •


*Colaborou Chi Hui Lin.
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves .

Publicado na edição n° 1271 de CartaCapital, em 09 de agosto de 2023.

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