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Pólvora e areia

O golpe no Níger amplia a tensão no Sahel, um dos palcos da nova Guerra Fria

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Garantia de emprego. Ameaçado de perder o cargo no governo do Níger, o general Tchiani decidiu derrubar o presidente eleito em nome “da segurança” do país – Imagem: Redes sociais e AFP/STR
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Um viajante intrépido teria dificuldade hoje para atravessar o continente africano em seu ponto mais largo, do Mar Vermelho até perto do Atlântico, sem passar por um país que não esteja dilacerado por uma guerra civil ou a se recuperar de uma, que não tenha sofrido um golpe militar desde 2021 ou não seja um Estado falido ocupado por uma mistura tóxica de políticos gananciosos, milícias e mercenários russos. A rota claramente desaconselhável do viajante o levaria da região norte de Tigray, na Etiópia, em guerra até o ano passado, depois pelo Sudão, onde uma luta interna pelo poder em um regime repressivo se transformou em violência geral, e à República Centro-Africana, hoje vista por muitos analistas como o melhor exemplo no continente do pior que pode acontecer a um país.

Depois disso vem uma escolha difícil. Uma rota ao norte poderia passar pelo Chade, governado por um soldado de 39 anos que tomou o poder em 2021, quando seu pai foi morto em batalha após três décadas no comando, e o Mali, atormentado por várias insurgências, extremistas islâmicos e mais mercenários russos contratados pelo segundo governante militar a assumir o poder nos últimos anos. Outro roteiro poderia passar por Camarões, abalado por uma longa guerra civil, e Burkina Fasso, que sofreu dois golpes militares apenas em 2022.

Entre divisões internas, extremismo e quarteladas, a região mergulha no caos

De qualquer maneira, nosso viajante precisaria – juntamente com um seguro muito caro e muita sorte – de meios para atravessar o Estado-chave do Níger, que se tornou o último país a ser vítima da instabilidade que hoje parece endêmica. Exatamente o que provocou essa recente revolta no Sahel ainda não está claro. O Níger tem sido visto como o mais estável da região. Poucos meses atrás, o secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, o descreveu como um “modelo de democracia”. Essa conclusão foi baseada no sucesso de seu presidente, Mohamed ­Bazoum, um modernizador centrista e amplamente pró-ocidental que conquistou mais de 55% dos votos nas eleições de 2021 e se tornou o primeiro líder a assumir o poder pacificamente desde a independência da França, em 1960. Relatos sugerem que Bazoum planejava reorganizar a guarda presidencial, uma força de elite de soldados comandada pelo general ­Abdourahmane Tchiani, que, por temer a demissão, vingou-se preventivamente e colocou Bazoum em prisão domiciliar.

O que se seguiu veio diretamente do roteiro de golpe de Estado. Soldados apareceram na tevê estatal para anunciar a remoção do presidente do poder e a suspensão da Constituição. Tchiani então se declarou líder do Níger em um discurso televisivo e explicou ter sido forçado a intervir para proteger o país de graves ameaças à segurança.

Em todo o continente há profunda consternação. O presidente do Quênia, William Ruto, descreveu a situação como “um sério revés” – um eufemismo. A estabilidade do Níger é crítica para o futuro do Sahel e o futuro desse último é crítico para o continente. Em uma década e meia, a região passou de pobre, mas relativamente estável, a um cadinho de caos político, sofrimento humano, tráfico criminoso e violência extremista. Em todos os lugares há deslocamento maciço, dificuldades econômicas agudas, intensa pressão demográfica e degradação ambiental. Muitos dos problemas mais significativos são exacerbados ou causados pela crise climática e as autoridades humanitárias descreveram a região como o “canário em uma mina de carvão do nosso planeta em aquecimento”.

Reposicionamento. Traoré, mentor da quartelada em Burkina Fasso, afastou-se do Ocidente e teceu uma aliança com a Rússia de Putin – Imagem: Sergei Bobylyov/Tass/AFP

Os regimes militares que chegaram ao poder em todo o Sahel se mostraram incapazes de enfrentar esses desafios. Sob Bazoum, os níveis de violência ­jihadista estavam em queda no Níger. No vizinho Mali, agora sob o comando do coronel Assimi Goïta, eles aumentaram 25% em um ano. Onde quer que os mercenários do grupo Wagner, ligado ao Kremlin, atuem os civis pagaram o preço. Inevitavelmente, os regimes militares dependem da força, não do consenso, para administrar a complexa e conturbada interação de comunidades, etnias e seitas. O resultado é mais instabilidade.

Os problemas no Sahel também têm impacto muito mais amplo e afetam países ao Sul e ao Norte, como Líbia, Argélia e Egito, entre outros. Os novos governantes do Níger rejeitaram a cooperação militar com a França, desferindo um duro golpe nos esforços de contrainsurgência no país e em seus vizinhos. O perigo da violência extremista originária do Sahel, mas executada na Europa, é real, assim como a perspectiva de fluxos maciços de refugiados, muito maiores do que os experimentados até agora. As consequências para grande parte da África oriental e central podem ser devastadoras, atrasando o desenvolvimento do continente em décadas ou descarrilando-o completamente.

No nível geopolítico, o golpe no Níger parece destinado a adicionar um novo recruta à incipiente coalizão de Estados do Sul global agora alinhados à Rússia contra os Estados Unidos e seus aliados ocidentais. O alinhamento na África hoje segue as linhas de fratura da Guerra Fria. Estas foram exploradas com grande cinismo e não pouca habilidade por ­Moscou. Em uma cúpula em São ­Petersburgo para líderes africanos no mês passado, embora o ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergei Lavrov, condenasse o golpe em Niamei, capital do Níger, o presidente Vladimir Putin elogiou a resistência à exploração “neocolonialista”.

Os habitantes da região toleram os golpes por decepção com a política tradicional

Nosso viajante poderia, no entanto, ter vislumbrado uma razão para otimismo durante sua jornada transcontinental tão deprimente. Ele poderia ter parado brevemente na Nigéria, por exemplo. Corrupção endêmica, governança caótica e uma economia paralisada fazem com que projeções positivas para o futuro desse vasto país pareçam demasiado otimistas. Mesmo uma queda recente na violência jihadista pode ser atribuída mais ao sucesso do ramo local do Estado Islâmico sobre um grupo extremista rival do que àquele das forças armadas da Nigéria. Mas as eleições de seis meses atrás sugeriram que um ponto de inflexão pode ser alcançado em breve. Embora Peter Obi, de 62 anos, empresário que ofereceu uma mudança radical de direção, tenha sido derrotado por Bola Tinubu, “padrinho político” veterano, a votação foi muito diferente das outras seis realizadas desde o fim do regime militar na Nigéria em 1999. Onde os partidos estabelecidos contavam com redes de clientelismo, apelos à solidariedade étnica ou religiosa e uma enorme máquina partidária para mobilizar apoio, Obi e o ­minúsculo Partido Trabalhista ultrapassaram as linhas de falha da Nigéria, prometendo governança eficiente e inovação, não política clientelista. O estilo de vida frugal e a abordagem modesta do candidato colocaram a imensa riqueza de ­Tinubu no centro das atenções.

O novo mapa político da Nigéria mostra faixas pintadas no vermelho brilhante do Partido Trabalhista. Uma corrida bem-sucedida à Presidência em 2027 é totalmente possível, dizem os analistas. Esses exemplos encorajarão outros em todo o continente. Mas a democracia tem recua­do em muitas regiões. Regimes repressivos, partidos que se mantiveram no poder por 40 anos ou mais e líderes “dinossauros” viram uma série de desafios de políticos geralmente mais jovens, que sabem falar com uma nova geração de eleitores e canalizar a grande impaciência por mudanças. Isso é uma decepção, mas, se a rápida urbanização, a juventude, o aumento da educação e a crescente conectividade de grande parte da África ainda não atingiram o nível crítico que permitiria a vitória dos movimentos reformistas de oposição, isso não pode durar para sempre. Os golpes no Sahel tendem a reforçar esse argumento, na verdade.

Segundo um relatório da ONU publicado em julho, embora possa parecer paradoxal, o apoio popular aos recentes golpes militares foi “sintomático de uma nova onda de aspiração democrática que está se expandindo por todo o continente”. A pesquisa com 8 mil entrevistados, 5 mil dos quais passaram por mudanças inconstitucionais de governo na África Ocidental ou no Sahel, apontou a impaciência generalizada com a política existente como um fator significativo no número recorde de golpes. Embora muitos tenham dito acreditar que o exército deva assumir quando um governo civil é incompetente, a grande maioria dos entrevistados prefere uma forma democrática de governo. Em suma, os golpes são aprovados apenas porque não há outra opção. Ofereça uma alternativa democrática, diz a lógica, e será mobilizado um profundo anseio por “eleições livres e justas, igualdade de gênero e proteção dos direitos civis”.

Isso significa que a lição mais importante aprendida por nosso viajante em sua árdua jornada pode ser que os acontecimentos recentes no Sahel, embora profundamente preocupantes e merecedores de toda a nossa atenção, não sinalizam necessariamente uma nova idade das trevas, onde homens de uniforme correm descontrolados pelo continente, saqueando recursos e fechando acordos com nefastos atores geopolíticos para reforçar seu poder. O ímpeto em todo o continente permanece com os jovens – a idade média dos entrevistados pela ONU era de 35 anos – e os esperançosos. Até veteranos cansados parecem ter decidido ser a hora de traçar uma linha na areia, até mesmo se forem seus instintos políticos, e não seus princípios, que lhes digam qual é a vantagem.

Ainda antes do prazo final de domingo à noite para a intervenção militar, ­Tinubu tinha deixado claro que não acreditava que a mudança forçada de governo em Niamei pudesse se manter. “Sem democracia não há governança, não há liberdade, não há estado de direito”, disse ele no início de julho. “Não permitiremos golpe após golpe na África ocidental.” Desde que estourou a crise no Níger, ele jogou o enorme peso econômico e político da Nigéria por trás do esforço internacional para restaurar Bazoum ao poder.

Bazoum, preso em sua casa, fez um apelo desesperado. “Lutar por nossos valores compartilhados, incluindo o pluralismo democrático e o respeito ao Estado de Direito, é a única maneira de fazermos um progresso sustentável contra a pobreza e o terrorismo”, escreveu no The Washington Post. Felizmente para ele – e para nós –, centenas de milhões de habitantes no Níger, Sudão, Mali, Burkina Fasso e em toda a região concordam. •

Publicado na edição n° 1272 de CartaCapital, em 16 de agosto de 2023.

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